sábado, 5 de julho de 2008

Vinicius de Moraes 2

Não faz muito, há uns dias atrás, como sugestão de leitura, citei a crônica PARA UMA MENINA COM UMA FLOR, do livro com o mesmo nome, de Vinicius de Moraes. Hoje trago para vocês outra crônica deste ótimo livro. Trata-se de UMA VIOLA DE AMOR. É realmente muito boa. Espero que gostem!!

Uma viola de amor
Vinicius de Moraes

Dêem ao homem uma viola-de-amor e façam-no cantar um canto assim... Sairei de mim mesmo e irei ao encontro das flores humildes dos caminhos e das lentas aves dos crepúsculos, cujo pipilo suspende na paisagem uma lágrima que nunca se derrama. Sairei de mim mesmo em busca de mim mesmo, em busca de minha imagem perdida nos abismos do desespero, minha imagem de cuja face já não me lembro mais...

Sairei de mim mesmo em busca das melodias esquecidas na memória, em busca dos instantes de total abandono e beleza, em busca dos milagres ainda não acontecidos...

Que eu seja novamente aquele que ergue do chão o pássaro ferido e, no calor de sua mão, dá-lhe de morrer em paz; aquele que, em sua eterna peregrinação em busca da vida, ajuda o camponês a consertar a roda do seu carro...

Que me seja dado, em minhas andanças, restituir a cada ser humano o consolo de chorar dias de lágrimas; e depois levá-lo lá onde existe a luz e chorar eu próprio ante a beleza do seu pranto ao sol...

Possa eu mirar novamente os pélagos e compreendê-los; atravessar os desertos e amá-los. Possa eu deitar-me à noite na areia das praias e manter com as estrelas em delírio o colóquio da eternidade. Possa eu voltar a ser aquele que não teme ficar só consigo mesmo, numa dura solidão sem deliquescência...

Bem haja o meu irmão no meu caminho, com as suas úlceras à mostra, que a ele eu hei de curar e dar abrigo no meu peito, Bem haja no meu caminho a dor do meu semelhante, que a ela estarei desvelado e atento...

Seja a mulher a mãe, a esposa, a amante, a filha, a bem-amada do meu coração; possa eu amá-la e respeitá-la, dar-lhe filhos e silêncios. Possa eu coroá-la de folhas da primavera em seu nascimento, seu conúbio e sua morte. Tenha eu no meu pensamento a ideia constante de querê-la e lhe prestar serviço...

Que o meu rosto reflita nos espelhos um olhar doce e tranquilo, mesmo no mais fundo sofrimento; e que eu não me esqueça nunca que devo estar constantemente em guarda de mim mesmo, para que sejam humanos e dignos o meu orgulho e a minha humildade, e para eu cresça sempre no sentido de Tempo...

Pois o meu coração está antes de tudo com os que têm menos do que eu, e com os que, tendo mais do que eu, nada têm. Pois o meu coração está com a ovelha e não com o lobo; com o condenado e não com o carrasco…

E que este seja o meu canto e o escutem os surdos de carinho e de piedade; e que ele vibre com um sino nos ouvidos dos falsos apóstolos dos falsos apóstatas; pois eu sou o homem, ser de poesia, portador do segredo e sua incomunicabilidade – e o meu largo canto vibra acima dos ócios e ressentimentos, das intrigas e vinganças, nos espaços infinitos...

Dêem ao homem uma viola-de-amor e façam-no cantar um canto assim, que sua voz está rouca de tanto insulto inútil e seu coração triste, de tanta vã mentira que lhe ensinaram.



PARA UMA MENINA COM UMA FLOR
Vinicius de Moraes
Editora José Olympio
17a edição
Rio de Janeiro 1988
páginas 99 e 100

2 comentários:

Marcelo Pontes disse...

Fala Velhinho! Já coloquei seu blog na minha lista de "coisas para olhar na internet". è muito legal a sensação de poder partilhar coisas que são legais para a gente com outras pessoas. Um forte abraço, obrigado pelas palavras sobre Fallingwater, e vamos em frente enchendo esse mundo de letrinhas!

Paulo Ricardo Bregatto disse...

Mano velho!! Sem dúvidas, este sentimento de perda total de fornteiras geográficas, que somente o mundo digital (ou o mundo dos sonhos) possibilita é uma grande curtição!! É como se fôssemos editores de nossas próprias idéias, sem censura prévia. O que é muito bom!! Teu blog tb está salvo nas minhas preferências, pois tenho feito com vcs estas super viagem!! Abraço carinhoso!!