quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Dia dos Pais

No início deste mês, com o advento da chegada do dia dos pais, recebi uma encomenda "secreta" da escola do Pedro. Refletir sobre a minha infância, sobre a minha relação com meu pai e sobre a minha vida atual na relação diária com o meu filho. Se fosse só refletir, a tarefa já seria interessante e instigante mas, além disto, a encomenda solicitou a escrita de uma "carta surpresa" para ser entregue ao filho no dia da festinha dos pais na escola.

Não foi fácil!! Pensar daqui, pensar dali, reunir assuntos e reflexões importantes, relembrar fatos de um passado muito distante ou de um presente ainda não sistematizado como crítica reflexiva. E os dias passando sem, ao menos, uma única linha ser escrita. Até que chegou a data limite para o envio da carta para a escola. E o jeito foi sentar, pensar e escrever. Não foi tão difícil assim, depois do primeiro parágrafo, as ideias estavam todas ali, aguardando apenas o tempo necessário para que elas fossem organizadas na forma do texto que segue abaixo.

A festa dos pais na escola foi ótima! Emocionante, como sempre são estas festinhas. Muito legal ver o meu guri, que já vai fazer 10 anos, fazer as apresentações diversas com aquele orgulho de ver o pai sentado na plateia. No final das apresentações eles receberam das professoras as cartas escritas pelos pais e que eles não tinham conhecimento, pois pensavam que apenas eles tinhas surpresas para os pais. Foi uma grande curtição ver a reação deles lendo as cartinhas... Então ai vai a cartinha que fiz para ele.

"Querido filho Pedro,

Hoje quem tem tema de casa sou eu! Um tema de casa muito especial instigante e prazeroso. Daqueles que a gente senta para fazer com entusiasmo e um pouquinho de ansiedade no coração e nem percebe a passagem das horas. Daqueles que a gente passa o dia inteiro pensando e refletindo sobre as coisas importantes da vida. Sabe por quê? Porque não existe nada melhor nesta vida do que escrever sobre a alegria e sobre a felicidade de ter um filho tão amado quanto você.

Já te disse várias vezes o quanto você foi esperado por todos e o quanto eu fiquei feliz quando recebi a notícia de que eu seria papai. Jamais vou esquecer a emoção que senti no meu coração, naquela noite quente de fim de verão, quando a mamãe me disse que em breve teríamos um bebezinho. Tão logo cheguei em casa depois do trabalho dei um abraço forte na mamãe e fiquei beijando a barriga dela e conversando contigo. Daquela noite em diante, durante todos os dias que antecederam o teu nascimento, eu conversei contigo, através da barriga da mamãe, contando as coisas do meu dia, te falando de planos e perguntando se estava tudo bem contigo e se você precisava de alguma coisa. Quando você foi crescendo lá dentro da barriga dela eu via você se mexendo, reagindo aos estímulos das nossas conversas, e eu sempre ficava com aquela alegre impressão de que você me ouvia e entendia tudo.

O mais legal deste período de espera, enquanto você morava na barriga da mamãe, foi experimentar o sentimento, estranho até então, de querer lembrar da minha infância. Muitas coisas eu já nem lembrava mais, quase como se eu não as tivesse vivido. Mas lembra daqui, puxa de lá e logo as lembranças foram surgindo e se avivando na minha memória e no meu coração. A lembrança da minha casinha da infância – aquela que você conhece –, dos brinquedos que eu tive e dos que eu não pude ter, dos amigos da rua e do bairro, do meu cachorro e da minha tartaruga, da minha primeira escola, da minha primeira professora, dos meus primeiros colegas de colégio, do carinho infinito dos meus pais e das preocupações que certamente eles sentiam diante das minhas muitas travessuras infantis e impaciências juvenis.

Neste período, também, eu comecei a pensar muito no meu pai, das alegrias, brincadeiras, carraspanas, conversas – às vezes boas, às vezes nem tanto –, dos conselhos, das recomendações diante das aventuras da vida, das balinhas que ele sempre trazia no bolso para nos dar quando chegava em casa do trabalho. E as memórias foram ressurgindo. Lembrei das viagens de férias nos verões que pareciam não ter fim, dos passeios pela serra nos finais de semana dos invernos rigorosos, das caminhadas pelo centro da cidade, sempre segurando naquela mão firme e forte. Lembrava, também, do zelo, da atenção e da paciência que ele sempre tinha diante das dificuldades da vida, da necessidade de ter coragem para enfrentar os desafios, da segurança que ele sempre nos passava diante dos problemas, sempre com aquele sorriso aberto no rosto dizendo: “...na vida tudo tem solução”, e do orgulho, da emoção e da alegria que ele demonstrava diante das nossas conquistas e vitórias.

Devo admitir que diante destas muitas lembranças eu tive um pouco de medo! Ficava me perguntando se eu saberia cuidar de um bebê? Se eu seria um bom pai? Se eu seria atencioso, paciente e tolerante? Se eu estaria presente quando você precisasse de mim? Se a minha vida seria longa o bastante para vê-lo crescer? E fui me dando conta de que nada disto era importante antecipar ou planejar e que a tua chegada, regada pelo amor crescente que já tomava conta do meu coração, me indicaria – no dia a dia – o melhor caminho.

E foi o que aconteceu!

Você avisou que estava chegando firme e forte, apressado, pois te esperávamos apenas para dali uns dias e eu me vi nas nuvens – que o lugar que os pais habitam diante da chegada dos seus filhos – indo em direção ao hospital numa linda noite quente de primavera. Você nasceu no dia da criança e foi o meu maior presente. Enquanto eu estava no vestiário do hospital trocando de roupa para acompanhar a mamãe no parto, eu ficava falando contigo em pensamento, sozinho naquela salinha: “...filho espera só mais um pouquinho que eu estou colocando a minha roupa de super-homem para ir te buscar”. Não via a hora de te segurar rente ao meu corpo, te olhar, te beijar, sentir o teu calor e as batidas do teu coraçãozinho. Me emociono lembrando daquele momento.

Daquele dia em diante a minha vida mudou. Para melhor. Muito melhor! Às vezes me pego pensando em como era a minha vida antes da tua chegada? Quais as coisas que eu fazia? No que acreditava? O que buscava? Como ocupava o meu tempo? A vida era muito vazia sem você, meu filho amado. Que alegria e que paz de espírito chegar em casa, mesmo depois de um dia pesado de trabalho, e ver aquela carinha linda no berço, me olhando com seus olhos vivos e com seus bracinhos esticados pedindo colo. Ou acompanhar silencioso o teu sono tranquilo e a tua respiração suave. Que emoção infinita ver você dando seus primeiros passinhos, ouvir pela primeira vez você me chamando de papai e acompanhar o teu crescimento numa reguinha com o desenho de uma girafa presa na parede do teu quartinho. A primeira escolhinha, a primeira bola de futebol, os primeiros desenhos, os nossos tantos passeios pela cidade, as nossas viagens de férias de verão, a música da estrada – lembras? E, meu Deus, me dou conta de como esta vida é boa, nos oportunizando viver e reviver, sem sentir, as experiências do passado e tudo aquilo que já tinha vivido e experimentado na minha infância.

De certa forma, meu filho, a vida é uma sucessão e reedição de fatos e experiências das nossas vidas. Hoje te vejo mocinho. Quase 10 anos de vida. Com sua personalidade forte, suas manias, sua vivacidade, sua inteligência, seus desejos, seus sonhos, seus projetos, me fazendo sentir, também, um orgulho sem tamanho de tudo o que você é e de tudo o que você me proporcionou ao longo deste tempo. Não te esqueça jamais meu filho: seja amigo dos amigos, respeite a tua família, seja justo, ético e honrado e não deixe nunca de amar e ser amado.

Para finalizar, lembre-se sempre de tornar mais doce o teu caminho e daqueles que caminham contigo plantando e cultivando sempre a alegria. A alegria é o estado de saúde que devemos sempre buscar, mais que a própria felicidade, pois a alegria não é um estado de espírito como se supõe ser a felicidade, mas sim uma sensação. Alegria, coisa tão incerta como o vento que sopra lá fora, que tem dias que vem, dias que não vem, que às vezes é tão forte que vira tufão, outras parece apenas brisa suave, que pode vir do sul ou do norte, do leste ou do oeste, mas que vem, queiramos ou não, na hora ou do jeito que bem entender...

Mais uma vez muito obrigado por seres este filho maravilhoso que és! Para mim, você foi e sempre será o maior presente e a maior alegria da minha vida! Que este amor que sempre povoa os nossos corações, te traga sempre a doce lembrança dos momentos felizes em que estivemos juntos.

Te amo mais que tudo nesta vida!"

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Pensar é transgredir

Lya Luft

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos. Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.

Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo. Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!"

O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação. Sem ter programado, a gente pára pra pensar. Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.

Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto. Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.

Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar. Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.

Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada. Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.

Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança. Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for. E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.