quinta-feira, 29 de julho de 2010

Hundertwasser

Teoria das cinco peles

“Eu sou tolerante. Mas revolto-me. Acuso. É a minha obrigação. Estou sozinho. Por trás de mim não há qualquer ditadura, qualquer partido, qualquer grupo, nem qualquer máfia. Nem um esquema intelectual coletivo, nem uma ideologia. A revolução verde não é uma revolução política. É suportada pela base e não é nem minoritária nem elitista. É uma evolução criadora em harmonia com o curso orgânico da natureza e do universo.”


Foi por intermédio do meu querido amigo Fernandão (aluno do curso de arquitetura e urbanismo da Ulbra, filósofo e ativista das causas ambientais) que eu tomei conhecimento mais aprofundado da obra de Hundertwasser e sua teoria das 5 peles. A razão que me levou a estudar a obra deste artista não poderia ser mais emergencial: simplesmente o Fernandão trouxe este assunto para seu trabalho final de graduação, sob minha coordenação.

Num primeiro momento, desespero total. Logo eu que sempre me alinhei limitada e convictamente aos racionalistas, me vi desconfortavelmente curioso com a dimensão naturalista da obra deste artista e filósofo com suas indagações e provocações sobre estética e beleza. A força midiática, massificada e acrítica da arquitetura contemporânea descontextualizada e desculturalizada encontra na obra de Hundertwasser, principalmente nos dias atuais, o solo fértil para as necessárias reflexões sobre identidade, espaço e sentido de lugar. Em conseqüência disto, a partir das primeiras leituras, as reações naturais de pré-conceitos deram rapidamente lugar ao desejo irrefreável de estudar e conhecer a obra e a maneira de pensar e agir deste artista. E é a síntese desta pesquisa preliminar que eu trago, brevemente, na forma deste texto para dividir também com vocês.

Entre os maiores pensadores do século XX sobre a arquitetura humanizada e ecológica, destaca-se a figura do arquiteto e artista Hundertwasser. Sua obra está voltada, em grande parte, para as questões ambientais, expostas tanto em seus quadros quanto em conferências, maquetes e realizações na área da arquitetura. O homem, na sua opinião, tem cinco peles: a sua epiderme natural, o seu vestuário, a sua casa, o meio ambiente onde vive e, a última, a pele planetária ou crosta terrestre onde todos vivemos.


Hundertwasser nasceu em Viena em 15 de dezembro de 1928. Hoje é seguramente o artista mais conhecido na Áustria. Também é o mais controverso e notório. A sua reputação internacional foi definitivamente consolidada pela volta ao mundo das suas obras em museus dos cinco continentes. Sua sólida e trepidante carreira se consolidou no final dos anos sessenta, iniciada com uma longa e decisiva estada em Paris onde, neste período, apresenta a sua produção numa série de exposições, discursos-manifestos e performances-happenings entre 1975 e 1983, fomentadas pelo seu empresário Joram Harel.

Joram Harel foi uma pessoa de forte importância e influência na vida de Hundertwasser. A amizade entre eles tem início em 1972, data marcante em sua vida pela libertação de todos os constrangimentos materiais, fato que lhe permitiu viver segundo seu mais forte desejo de estar em constante harmonia com a natureza e agir, em cada instante da sua vida, em completa e inquestionável concordância com os seus princípios. Também em 1972 sua vida é fortemente marcada pela morte da sua mãe, a quem o artista sempre esteve fortemente ligado. Trata-se realmente do início da grande viagem. Die Kehrtwendung será o título do discurso que fará duas vezes em 1979, em Viena e em Pfäffikon, na Suíça. Sua arte identifica-se, a partir de então, cada vez mais estreitamente com as opções fundamentais da sua visão de mundo.

Hundertwasser é sobretudo um pensador. Além de seus trabalhos como artista, ambientalista e arquiteto, por volta dos anos 60 e 70, ele propõe por novos caminhos uma moral prática da beleza, trilhas essas que são guiadas por uma reconstrução do modo de ver a vida e de agir sobre ela como um ser humano consciente e atuante em seu habitat.

Em 1968 Hundertwasser compra na Sicília um velho veleiro de madeira chamado San Giuseppe T que leva para Veneza, restaura-o e rebatiza-o Regentag. De 1968 a 1972 o barco fica ancorado na lagoa de Veneza como uma espécie de moradia do artista que aí se desloca para viver e trabalhar a bordo ou para navegar pelas costas do Adriático. É desta época o filme apresentado em Cannes em 1972 pelo cineasta Peter Schamoni intitulado Regentag (dia de chuva).

É como artista que ele tomado pela verdade e força da beleza, enquanto pintor ele formula seu postulado, não mais que uma simples verdade: “A natureza é um fim em si, nada existe fora dela, enquanto harmoniosa é bela, a arte é o caminho que nos conduz à beleza.”

A sua reverência à criação é algo que pode ser comparado a fé religiosa, para Hundertwasser é um terreno sagrado, um direito universal, por isso é considerado um religioso naturalista. É guiado por esse princípio de beleza que ele configura uma nova moral prática a nós. A sociedade em que vivemos, guiada para o consumo, é criminosa por nos desviar de nosso verdadeiro objetivo como homens, encontrar o nosso bem estar, viver bem e fazer o bem para nosso ambiente.


Em 1972 publica o seu manifesto intitulado O teu direito de janela – O teu dever de árvore a favor de um habitat de melhor qualidade que na sua visão consiste em telhados cobertos de vegetação e arranjo individual das fachadas. Depois do Manifesto do bolor contra o racionalismo na arquitetura (forte tomada de posição em matéria de sociologia do habitat) datado de 1958, será necessário aguardar 10 anos até que o artista clarifique e precise o seu ponto de vista naturista com o seu Discurso Nu e o manifesto Los von Loos (longe de Loos). Para completar o sistema filosófico da moral prática de Hundertwasser O direito de Janela trás o bolor como metáfora do poder criador da natureza.

Seus conceitos estruturais sucessivos definem que o homem, se quiser permanecer em harmonia com a natureza, deve tomar consciência do seu maior direito: o direito individual ao arranjo da fachada da sua casa. Se para Adolf Loos o ornamento é um crime (Viena, 1908), dito como reação aos excessos florais do Jugendstil, mensagem que a arquitetura racionalista adotou como credo, Hundertwasser quer, ao contrário, sossegar os habitantes e suscitar neles o desejo de usar o seu direito de janela, aceitando abertamente o fato e a causa para a qualidade decorativa na arquitetura.

O Direito de janela inaugura uma série de atitudes que vão completar a versão do artista da receita do bem-estar na terra: Inquilino Albero (Milão, 1973), As retretes de húmus (Munique, 1975) e O manifesto da santa merda (Pfäffikon, 1979). Depois de ter reconstituído o ciclo da matéria viva e definido as modalidades de acordo com a natureza nos pontos-chave do seu plano ideológico (arte, arquitetura e ambiente) Hundertwasser vai entrar em guerra contra a poluição sob todas as suas formas: poluição do ar, riscos nucleares, atentados à natureza, destruição do patrimônio, entre outras.

Entre todas as datas importantes na vida do artista, 1980, acima de tudo, é uma data marcante em sua profícua carreira. Neste ano a cidade de Viena apresenta a maquete da futura Hundertwasser Haus na esquina das ruas Löwengasse e Kegelgasse. É neste exato momento que o crítico idealista para à ação prática, tornado-se construtor e afirmando a sua vocação de “médico da arquitetura”.

As exposições de maquetes de arquitetura vão, a partir desta data, juntar-se às exposições itinerantes de pintura e de gravura que percorrem o mundo. Em conseqüência direta disto, vários novos projetos sucedem-se, assim como novas e várias campanhas, discursos, discussões e encontros vão alimentar a polêmica permanente em Viena e avivar a hostilidade dos arquitetos racionalistas que são o alvo direto de Hundertwasser. A partir daí sua obra arquitetônica torna-se cada vez mais convincente nos aspectos de eficiência dos resultados e no evidenciar mais nítido da coerência do autor com os seus princípios naturais de preservação.

Somente depois de ter pintado a sua primeira espiral em 1953, Hundertwasser sela a marca da sua visão do mundo, da sua relação com a realidade exterior. Essa relação opera-se por osmose, a partir de níveis de consciência sucessivos e concêntricos em relação ao seu eu profundo. O símbolo pictórico ilustra a metáfora biológica. Para Hundertwasser o homem tem 3 peles: a sua epiderme natural, o seu vestuário e a sua casa. Quando, em 1967 e 1968, o artista profere o seu Discurso Nu para proclamar o direito do homem à sua terceira pele (a livre intervenção sobre a sua casa), ele completa o ritual do ciclo inteiro da espiral. Ele reencontra a sua primeira pele, a da sua verdade original, a sua nudez de homem e de pintor, despindo-se da segunda pele (a sua roupa) para proclamar o seu direito à terceira pele (a sua casa).

Somente mais tarde, após 1972, quando a grande viragem ideológica já tinha passado, a espiral das maiores preocupações de Hundertwasser vai desenvolver-se. A sua consciência de ser humano vai enriquecer-se com novas questões que vão despertar novas respostas e suscitar novos compromissos. Assim aparecerão as novas peles que virão juntar-se ao invólucro concêntrico das 3 primeiras. A quarta pele do homem é o meio social (da família e nação, passando pelas afinidades eletivas da amizade). A quinta pele é a pele planetária ligada diretamente ao destino da biosfera, à qualidade do ar que se respira e ao estado da crosta terrestre que nos protege e nos alimenta. A espiral visionária de Hundertwasser atinge, então, sua máxima amplitude.

A teoria das cinco peles define uma para cada esfera de nosso ser.

A primeira pele é a epiderme. Em cima de manifestos e ações ele questiona a estruturação de seu habitat e o modo em que vivemos nele e aponta o direito a criação, a arte como um gênero de vida, uma nova orientação à matéria. Através da “metáfora do bolor” fica a indicação que “cada habitante deve cultivar o seu próprio bolor doméstico”, dando por fim a tendência tão comum de distanciamento do homem com a natureza em prol de uma falsa assepsia. O que é proposto aqui é um retorno da participação do homem ao ciclo orgânico da matéria, como ser biológico habitante deste planeta.

A segunda pele é o vestuário, a criação e o consumo em série são questionados, na medida em que eles omitem o homem de afirmar a sua singularidade em sua vestimenta, Hundertwasser aponta uma renúncia ao individualismo, um anonimato do vestuário, onde todos são afetados por 3 males: a uniformidade, a simetria e a tirania da moda. Em contraposição ele cria suas próprias roupas, afirmando-as como seu passaporte social, aproveitando-as em sua riqueza de formas e cores e acima de tudo, afirmando o direito à diversidade.

A terceira pele é a casa, segue a espiral de seu pensamento e faz um simbólico chamado: o teu direito de janela – o teu dever de árvore. Em sua visão, homens e mulheres criativos, tem o direito de enfeitar, considerando a subjetividade dos seus gostos, e tão longe quanto seus braços alcancem, as suas janelas ou fachadas exteriores. Ele caminha mais um pouco e une cada vez mais estética e moral. A casa do homem é o tema, e a discussão sobre a uniformidade das criações humanas retorna, a arquitetura racionalista é criticada em prol do fim da linha reta, o retorno ao traço orgânico e individual é afirmado também na arquitetura. Além da reforma de fachadas, cunhando o termo redesign, no qual cada morador tem o direito de enfeitar sua moradia.

Neste sentido, Hundertwasser propõe uma reestruturação da arquitetura, que consiste em singulares projetos, muitos deles efetivamente realizados, de casas com relva no telhado com intuito de purificar a água da chuva, filtrando-a e regenerando o ciclo da vegetação através, também, da utilização do húmos da matéria orgânica produzida pelos moradores da casa. A beleza, para ele, é sempre funcional. O que é proposto é um habitat manifesto, com terraços jardins, varandas bosques e pontos de encontro para promover a interação entre os moradores. Quanto à estética das casas, ele procura sempre a integração com a natureza, janelas irregulares, primazia de cores naturais e nada de linhas retas.

A quarta pele, a que se refere ao meio social, é a pele que comenta a formação da identidade, interessando muito ao artista a questão da identidade nacional. Hundertwasser teve apenas uma consciência tardia da quarta pele, a familiar. Filho único, cujo pai morreu quando era criança, a sua vida de família limita-se a uma relação exclusiva com a mãe, feita de uma ligação visceral e de uma profunda ternura irônica. A quarta pele não para no nível da família, natural ou adquirida. O meio social entende-se ao conjunto dos grupos associativos que gerem a vida de uma coletividade. A nação oferece ainda hoje a trama mas densa do tecido comunitário. O projeto de sociedade estético-naturista tem uma faceta pacifista. A paz na beleza é a expressão soberana da ordem natural, a harmonia universal.

A quinta pele é a ecologia, a preocupação e o cuidado com o meio global. É aqui que a sua consciência eco-naturalista reina, é sobre esta pele que seus projetos arquitetônicos, bastante ousados, são realizados e uma série de outros projetos e campanhas que ele se envolve em prol de um mundo mais harmônico, com mais respeito à natureza. A ecologia é a pedra de toque da sensibilidade de Hundertwasser, o citoplasma sensitivo da sua quinta pele. Hundertwasser é naturalmente “verde” como é naturalmente pintor, austríaco, cosmopolita e pacifista. Desde a sua mais tenra idade manifestou uma hipersensibilidade ao meio ambiente. A natureza é a realização suprema, fonte da harmonia universal. O seu imenso respeito pela natureza suscitou nele o desejo de a proteger contra os atentados do homem e da indústria.

A evolução conduz o homem à sua ruína, declara profeticamente Hundertwasser. Podemos deixar-nos arrastar e constatar que caminhamos para o desastre inevitável, ou podemos esperar pelos amanhãs que surgirão após a catástrofe. Se não queremos ser arrastados nem queremos esperar, existe uma terceira via – a da porta estreita – mais delicada e mais difícil, a da resistência e, na medida do possível, da resistência não violenta. O sistema de destruição global não está isento de erros que devem ser explorados para desacelerar a evolução negativa e criar uma moratória para a humanidade. A ecologia se for verdadeira, pura, naturista e não distorcida pela demagogia diária dos “políticos verdes” é um bom agente retardador.

Não se pode confiar no homem para conter o limiar descontrolado do crescimento. Haverá sempre cientistas e ditadores irresponsáveis. O remédio poderia ser a educação – a sensibilização das pessoas para a beleza através da arte.

Por alguma razão estranha – mas muito característica – o Fernandão desapareceu da Universidade. Cursou e concluiu o primeiro semestre da diplomação, plantou e provocou a minha curiosidade e sumiu. Não apareceu para cursar o segundo semestre e, finalmente, concluir a sua longa jornada de estudante de arquitetura. De certa forma, isto já era esperado. Este meu grande amigo, inquieto com a certeza de tantas coisas por fazer, neste mundo estranho e desigual que temos que mudar, certamente se encontra diante de outras batalhas mais emergentes e abrangentes. Cada novo semestre, quando abro os cadernos de chamada para tomar conhecimento das novas turmas, corro os meus olhos rapidamente do primeiro ao último aluno para ver se encontro seu nome. Mais cedo ou mais tarde é certo que ele retornará, não somente para concluir a sua formação acadêmica mas, principalmente, para me ajudar a dar continuidade à minha.