sexta-feira, 14 de maio de 2021

Planejar, para descansar sem culpa

Texto publicado na Revista RFP n°2 - Revista Felipe Petrillo.
Uma revista de corrida feita por corredores.
ISBN: 978-65-00-22307-1


Planejar, para descansar sem culpa

Com muita frequência ouvimos dos gestores e dos governantes, como um vetor de motivação nos tempos de crise, a seguinte frase: “temos que fazer deste limão, uma limonada!”. Sempre senti um desconforto diante dela, principalmente, quando dita como um convite à superação. Não vejo precisão nesta frase por identificar nela uma dose exagerada de resignação e impotência e, diante disto, uma explícita provocação para se fazer muito com pouco. Meu sentimento inicial é de reconhecer uma falta de envolvimento mútuo com a causa, principalmente, por eximir quem a profere do compromisso e da responsabilidade com os investimentos necessários para se fazer aquilo que precisa ser feito, com planejamento e qualidade. Quando cito os investimentos, não me refiro unicamente ao dinheiro, enquanto moeda de intermediação e troca. Me refiro ao planejamento, ou neste caso, na falta dele.

Planejamento tem sua origem no latim Planus, cujo significado pode ser entendido como planificar, colocar no plano, e, com isto, permitir ao planejador uma visão ampla e completa dos vários elementos que constituem um problema. Quando falta o planejamento, vem o desespero do improviso e, infelizmente, surgem as frases prontas como ilusório vetor de falsa motivação.

Claro que entendo que fazer mais com menos é a base para uma atitude sustentável, quando feita com zelo e responsabilidade, e expressa uma boa dose de preocupação com a necessária economia de recursos financeiros e meios de produção, com o propósito de minimizar os impactos na economia e no meio ambiente.

Mas na maioria das vezes em que a frase é utilizada não se trata disto. Trata-se do eterno conflito entre Capital e Meios de Produção, onde quem tem mais, para obter mais ainda, faz uso da capacidade produtiva de quem tem menos. Esquecem, os que usam a frase como mantra de produtividade, que, com um limão podemos fazer apenas uma limonada para consumo próprio, enquanto que a crise nos exige justamente o contrário: usar, com inteligência coletiva e proativa, a nossa capacidade de planejar para inovar e empreender, experimentando e construindo estratégias de correção de rota e reversão da crise para todos. Isto se dá tanto na escala das grandes corporações, quanto na escala doméstica do dia a dia. Aceitar passivamente a crise, tendo que aumentar a produtividade apenas tendo como arma a metáfora do limão mágico e motivador, é um caminho exploratório que só faz aumentar a desigualdade.

Portanto, planejar é preciso! Se vamos levar a vida, sempre e somente, ao sabor do vento quando vemos estamos em território desconhecido, o que nem sempre é uma coisa ruim, mas viver apenas de horizontes incertos, também, tem sido um componente do atual sentimento de tensão e medo que acompanha a população diante da situação econômica atual e dos avanços da pandemia do Covid-19, ainda sem uma perspectiva de cura.

Planejar nos ajuda a entender a diferença entre o desejo, o sonho e a realidade. Enquanto que o desejo e o sonho são sentimentos de querer passivamente alguma coisa, a realidade é o conjunto de ações necessárias para se chegar lá. Quando conseguimos identificar esta sutil diferença, saímos da zona de conforto de apenas querer e esperar, para nos tornarmos protagonistas dos movimentos que efetivamente nos farão atingir o objetivo. Planejar é definir e desenhar estes movimentos reais e estas ações estratégicas na linha do tempo e do espaço.

Não há perda de romantismo no planejamento, como se transformássemos o viver num processo frio, mecanicista e previsível, pois a vida, sempre dinâmica, irá constantemente nos oferecer surpresas e novas perspectivas e, em consequência disto, nos exigir revisões no planejamento capazes de promover as devidas correções de rota ao longo do caminho. De certa forma, planejar é pegar aquele grande desafio que, por ser grande, assusta e se mostra inatingível e fragmentá-lo em pequenas partes, capazes de serem encaradas e resolvidas, também, com pequenos movimentos e atitudes.

O mágico deste processo de entender a vida como, parte aventura espontânea e parte planejamento estratégico é justamente a busca do equilíbrio que nos permite sermos leves como a pluma, mas sempre com o olhar preciso na direção e no movimento dos ventos, pois ajustar as velas sempre será uma tarefa necessária. Quando nos acostumamos a planejar, até mesmo as pequenas coisas, aprendemos a prever os imprevistos, deixando na linha do tempo das ações um espaço para algum problema ou evento inesperado, não visualizado previamente, que possa acontecer ainda em tempo hábil para ser analisado e resolvido.

Para acertar em cheio é preciso aceitar o imprevisto como parte do processo de planejamento. Me refiro, neste sentido, ao imprevisto – que podemos chamar de erro planejado – como componente das necessárias experimentações e que darão aos acertos o balizamento correto e os limites entre um resultado e outro. Acertar no planejamento, às vezes, é muito mais andar neste intervalo entre o erro e o acerto do que ter a precisão do alvo. Cada desafio aliado à nossa capacidade de absorver riscos, irá definir as margens seguras para o erro. Mas o erro planejado é parte do processo e exige coragem para o planejador não esmorecer diante da crítica. O erro é o registro das possibilidades, como muito bem a ciência e as grandes invenções têm nos demonstrado.

A experimentação e o erro, como parte do planejamento, estão no cerne dos processos criativos e no DNA das ideias que geraram as grandes revoluções no campo da ciência, da tecnologia e das artes. Muitos dos grandes feitos da ciência deram saltos quânticos justamente pelo evento do erro. Portanto, nestes momentos de economia retraída, não devemos ter medo de planejar, ousar e experimentar. Não devemos nos encolher e nos apequenar por medo de errar. Quando planejamos e consideramos os imprevistos no nosso planejamento, criamos os anticorpos para superá-los mais rapidamente do que quando somos pegos de surpresa. A vida nos mostra isso diariamente.

No fazer diário do meu ofício de arquiteto e urbanista e, também, de professor universitário, o planejamento é uma ferramenta necessária e muito eficaz. Em essência, o arquiteto e urbanista é o profissional do projeto e da obra, e projetar e construir alguma coisa que ainda não existe é puramente planejar. Seja a reforma de um pequeno espaço da casa, o desenho de um mobiliário especial, as edificações de qualquer tamanho ou função ou o projeto urbano de uma grande cidade.

Definimos e colocamos na linha do tempo as etapas de projeto e obra, o custo financeiro de cada uma delas e o momento exato em que um processo construtivo tem que estar pronto, para liberar o início de outro processo. Também, definimos quando teremos maior ou menor desencaixe financeiro e a sua síncrona vinculação com cada etapa da obra e com o calendário. Em paralelo, vamos dando a atenção necessária aos vários processos legais de aprovação e licenciamento tanto do projeto, quanto da obra. Somente quando fazemos este planejamento detalhado, nos sentimos seguros para executar mais do que um projeto e uma obra simultaneamente.

Na Universidade o planejamento é tudo. Tanto para o professor, quanto para o aluno. É tarefa do professor, construir a proposta pedagógica para um novo curso, um novo saber ou uma nova disciplina, elencar os conteúdos, definir os exercícios, ajustar o sistema de avaliação e construir o cronograma para as aulas. Quando o professor não faz isso, o aluno logo se dá conta do improviso e o descrédito toma conta da sala de aula. Também, o aluno necessita se planejar para aprender e atender os desafios das diversas disciplinas. Sempre incentivo os meus alunos ao prazer do exercício do planejamento, dizendo para eles: “quem planeja suas atividades acadêmicas poderá ter um final de semana de descanso, sem o desagradável sentimento de culpa por não estar trabalhando”. O resultado tem sido muito bom. Até hoje quando encontro antigos alunos eles fazem questão de me relatarem suas ótimas experiências com o planejamento estratégico na vida e no trabalho.

A certeza da importância do ato de planejar é sentida, também, noutras profissões e noutros tantos setores da nossa vida. O curioso, no entanto, é quando nos damos conta de que fazemos isso em nossas atividades profissionais, mas não temos o hábito salutar de planejar a nossa vida. Pode ser pela falta de definição das prioridades, pois definir prioridades é planejar. Pode ser porque, às vezes, damos mais importância para o trabalho do que para o convívio familiar. Quando vemos, nossos filhos cresceram, nossos pais envelheceram, alguns amigos se foram, perdemos aquela oportunidade de trabalho, deixamos de fazer aquela viagem, nos damos conta de que os nossos olhos perderam um pouco daquele frescor juvenil e nos vemos diante dos eternos lamentos sobre o quanto deveríamos ter feito mais isso e menos aquilo.

Fortaleci muito a experiência de planejar a vida, além do trabalho, quando resolvi fazer uma atividade física. A correria do trabalho no escritório e na Universidade, aliada a administração dos assuntos de família e a falta de um regramento relacionado à saúde, me fizeram sentir a necessidade urgente de ter uma válvula de escape para as tensões diárias. Nunca fui um praticante adepto aos esportes coletivos, por pura falta de habilidade com a bola, e, também, não me sentia feliz dentro de uma academia, fazendo aquelas exaustivas e necessárias séries infinitas de repetições dos exercícios.

Foi quando conheci e me envolvi com a corrida de rua. Me soava bem esta atividade por não requerer grandes investimentos financeiros iniciais e por me permitir praticá-la nos intervalos entre as minhas atividades de trabalho. Da decisão tomada em começar a correr até a primeira corrida, passaram-se 12 meses. Então, me dei conta de que não existiam os tais intervalos entre as atividades profissionais. Uma atividade estava precisamente interligada na outra, sem espaço inclusive para os imprevistos e sem espaço para uma alimentação saudável. E sempre havia uma desculpa para não calçar o tênis e correr. Então, recebi o convite e a motivação que me faltavam, numa conversa com o meu ex-aluno e grande amigo Júlio Rabelo, para entrar no grupo de corrida que ele fazia parte.

Mais uma vez planejar foi fundamental, afinal de contas, havia as corridas de rua duas vezes na semana e o, por mim, temido treino técnico para reforço muscular. Jamais direi para as pessoas para praticarem a corrida. Correr não é uma coisa natural que o organismo aceita bem. Dói, os músculos e as articulações reclamam, cansa, requer técnica, treinamento, repetições, disciplina, equipamentos adequados e a abertura de um tempo na agenda apertada para valer a pena. Me reservo a dizer para quem me pergunta como é correr: “a corrida mudou a minha vida”. E mudou para melhor!

A saúde não vinha bem, estava muito acima do peso, minha respiração era sempre ofegante e, até mesmo, as simples atividades domésticas geravam um grande cansaço.  Com o planejamento, com a seriedade necessária para executar os desafios da corrida, com o apoio da família, com a qualificada orientação do professor e com a energia positiva e motivadora do grupo, consegui em 10 meses aprender os rudimentos da técnica, entender a importância do equipamento certo, revisar o valor energético e nutritivo dos alimentos, entender a importância da hidratação, melhorar a minha capacidade cardiorrespiratória, voltar ao peso adequado para a minha altura e completar a minha primeira meia maratona. Ainda hoje me surpreendo com isso.

Passados 5 anos da entrada no grupo de corrida outros aprendizados foram se incorporando como, não ter pressa para chegar (ver artigo na RFP n°1 - Páginas 9/16), movimentar corretamente o corpo, ajustar a respiração, cuidar com o trânsito e com as irregularidades do piso, dar ao organismo o tempo adequado para o descanso e para a correta recuperação muscular, ter os necessários cuidados gerais com a alimentação, monitorar contínua e responsavelmente os exames periódicos de saúde, entre outros. Cada vez que corro, consigo colocar muitos pensamentos perdidos em seus devidos lugares. Naquele momento sou eu com os meus pensamentos, minhas passadas sincronizadas com a respiração, com a postura e com o movimento adequados do corpo, com as paisagens do trajeto, com as coisas que eu fiz e ainda tenho que fazer ao longo da semana, e o tempo parece que voa.

Para não ser vencido pela preguiça e pelo cansaço, que são mecanismos naturais de autodefesa do organismo contra o ato de correr, tudo isso requer muito planejamento. Mais planejamento do que força de vontade. Monitorar a previsão do tempo, organizar os roteiros para as corridas de rua, treinar e participar das competições, revisar a alimentação, cuidar da hidratação, checar o equipamento, entre outras tarefas prazerosas do corredor. Então, nos damos conta de que a corrida envolve, pelo menos, 3 etapas: planejar, correr e descansar sem sentimento de culpa.

Portanto, menos improviso, mais planejamento, menos crença naquilo que não depende de nós, mais atitude e coragem para tudo que está dentro e depende de nós. Somos o que sabemos, acreditamos, pensamos e propagamos, mas seremos sempre lembrados pelo que fazemos. Planejem, mexam-se, sejam felizes e deixem as metáforas e os limões em paz.