quarta-feira, 1 de julho de 2020

Correr, para não ter pressa!

Texto publicado na Revista RFP - Revista Felipe Petrillo
Uma revista de corrida feita por corredores
ISBN: 978-65-00-05619-8



Correr, para não ter pressa!

Pode parecer um paradoxo. Como pode alguém se deslocar com rapidez sem ter pressa para chegar, se é justamente o desejo de chegar que nos faz correr? Mas a provocação é justamente essa: desacelerar para termos a oportunidade de curtir e perceber a beleza do caminho, mais que a exaustão da chegada. Estamos presenciando transformações agudas no mundo atual. Reformas sociais e trabalhistas, reciclagem das legislações, inovações científicas, descobertas históricas, evoluções tecnológicas, entre outras. No entanto, os indicadores que medem a qualidade de vida e o nível de alegria e satisfação das pessoas têm apresentado dados preocupantes: as pessoas não estão felizes.

Avançamos e evoluímos em muitos setores da vida, mas não estamos sendo eficazes em transformar estes avanços e estas evoluções em valor agregado capaz de permitir para todos uma vida tranquila e menos acelerada. Fatores essenciais como acesso ao trabalho, saúde, educação, segurança e lazer estão distantes da população e a crise econômica, ampliada pelos reflexos da pandemia do Covid-19, parece ampliar ainda mais a sensação angustiante, desumana e perversa de desamparo e desigualdade.

Muitos destes avanços - pelo menos em escalas relativas - tem nos tirado da linha de risco da fome, doenças e guerras, mas este texto não trata destes avanços em grande escala universal. Trata da escala do dia a dia e do cotidiano das pessoas, onde a concorrência, o individualismo, a velocidade das coisas, as decisões urgentes e a falta de uma visão positiva sobre o amanhã, tem nos mantido alertas e reféns da incerteza, vivenciando um clima de insegurança, tensão e medo.

Enquanto a economia pré-pandemia divulga e festeja a implantação e a crescente produção da indústria 4.0 - onde a automação geral toma o lugar do trabalhador - o desemprego cresce de forma alarmante, deixando sem ter o que fazer grande parte da capacidade humana de produção. A falta de oportunidades de trabalho, por sua vez, retira de circulação o poder de compra das pessoas, fato que paralisa a produção e, consequentemente, a economia. O custo social deste fenômeno precisa ser mensurado com a mesma eficiência com que o mercado de ações, mesmo com a crise de saúde pública internacional, comemora a retomada lenta e gradual dos seus bons resultados. Estamos presenciando índices de desigualdade social capazes de nos levar a conflitos civis de grande escala, como temos presenciado em nosso país. E não temos uma rede de proteção social, além do necessário voluntarismo, capaz de reconhecer que a fome, entre outras necessidades básicas da população, não pode esperar as grandes estratégias e ações planejadas dos governantes que parecem perdidos, distantes das demandas reais da nação e sem a visão real da gravidade da situação do nosso país. A fome exige, humanitariamente, ações imediatas.

A velocidade em processar dados digitais e projetar cenários virtuais deveria nos alertar para a importância de não vivermos na velocidade dos computadores, como se tudo fosse urgente, invertendo valores e transgredindo o bom senso, mas planejar com conhecimento de causa e consequência as nossas ações de curto, médio e longo prazo, buscando acesso básico àquilo que agrega qualidade de vida para toda a população.

Vivemos um momento de produção cultural acrítica, bombardeados por muita informação, falsa e verdadeira, no entanto nunca produzimos tão pouco conhecimento capaz de nos tirar da zona de urgência. É o paradoxo da tecnologia digital: quanto mais geramos e acumulamos dados, menos sabemos como transformar estas informações em conhecimento. E é o conhecimento o vetor capaz de nos fazer avançar na definição de padrões de qualidade de vida.

Não são os robôs e as ferramentas digitais, enquanto processadores matemáticos, que agregarão relevância, qualidade, conteúdo e rigor científico ao conhecimento. Poderão acelerar o cruzamento de informações e modelar novos modelos de vida, mas sempre será preciso que alguém interprete, traduza e transforme estas informações em conhecimento alinhado às verdadeiras demandas da sociedade que estamos inseridos. Neste sentido, a caneta sobre o papel nas empresas, o giz sobre o quadro verde na sala de aula ou o lápis de carpinteiro riscando uma parede no canteiro de obras, são suficientes para se expressar uma ideia inovadora e empreendedora, quando se tem, de fato, uma verdadeira ideia.

Inovação, empreendedorismo e sustentabilidade se tornaram ferramentas superficiais de propaganda da sociedade de consumo atual. Mas elas não nascem em qualquer lugar, é preciso que o caminho esteja pavimentado com foco, investimento e cultura experimental. Para acertar em cheio é preciso experimentar muito. E errar, para poder revisar e tentar de novo. A experimentação está no cerne dos processos criativos inovadores e empreendedores. Experimentar exige autonomia e coragem e, por isso, é a base dos grandes acertos e das ideias inovadoras, e isto tem muito valor no mercado atual e no mundo criativo, remoto e compartilhado.

Temos a tendência superficial para acharmos que a genialidade de uma grande ideia é fruto do instantâneo mágico e veloz de uma única mente privilegiada. Quando fazemos isso, seja por conforto ou para explicar uma possível falta de atitude, damos as costas para o processo coletivo, compartilhado, contínuo e repetitivo das tantas experimentações e erros que vieram antes do acerto e que deram ao acerto o ambiente propício para sua invenção. Ser inovador, criativo e empreendedor não são o resultado de ações urgentes, isoladas, instantâneas, mágicas ou divinas. São o resultado de foco, planejamento e muito trabalho sério na busca de um objetivo e de uma solução.

As demandas urgentes que possuímos como povo, sociedade e nação não devem ser tratadas com abordagens inexperientes, irresponsáveis e superficiais de curto prazo, por mais ilusoriamente rápidos que possam parecer os seus efeitos, mas com ações maduras de crença na ciência com planejamento científico criativo, inovador e empreendedor antevendo e construindo a qualidade de vida que queremos ter e o planeta em que queremos viver. Distanciar o olhar para esta realidade significa nos condenar a viver continuamente, década após década, usando as nossas melhores energias intelectuais e produtivas apenas para consertar os erros da nossa própria falta de ação e visão atuais, assim como, da falta de planejamento estratégico sério das gerações que nos antecederam.

Planejar aprendendo com nossos erros e acertos já seria um bom caminho para os nossos gestores e governantes. Não se faz o novo negando os grandes acertos ou atropelando as experiências comprovadamente eficazes. Temos visto muito desta prática na gestão do país, empresas e universidades. O jovem não é garantia de inovação, a velocidade não é sinônimo de eficiência, o novo não é indicador de qualidade e a tecnologia não é condição única para os avanços do conhecimento. Claro que é preciso resolver muita coisa com brevidade, mas resolver o hoje com urgência e desespero, apenas cobre superficialmente os buracos do ontem, enquanto que a sociedade necessita de uma revisão dos seus códigos de convivência, de uma reformulação ética e moral capaz de pavimentar com inovação a sociedade do amanhã.

Temos aprendido muito com o distanciamento social. Principalmente, redescobrir o nosso espírito solidário e compartilhado de grupo. Vivemos em um planeta digital conectados em rede, mas nunca nos comunicamos tão pouco e com pouco conteúdo e nunca estivemos tão sós e isolados. Uma das qualidades que fizeram da espécie humana uma das mais bem sucedidas entre as demais espécies foi justamente a sua capacidade de agir e reagir colaborativamente com seus pares. O individualismo e a velocidade do mundo contemporâneo parecem nos ter feito esquecer disto.

Certamente sairemos diferentes deste aprendizado que estamos tendo com a pandemia e com o distanciamento social. O reencontro com a vida na célula da família, a saudade dos amigos e familiares, o reconhecimento, a redescoberta e a reciclagem dos nossos valores e competências, a certeza da força e da importância do nosso voto, a consciência do exercício da cidadania, tudo isto está sendo revisitado e revisado por nós, em maior ou menor grau de imersão, nos fazendo crer que existe um mundo de novas oportunidades aguardando as nossas qualidades reeditadas e renovadas, com autoconfiança e com a certeza de que seremos sempre mais fortes como grupo, reconhecendo a força das ações coletivas e colaborativas, e de que existe um novo lugar e uma nova oportunidade para cada um de nós.

De certa forma, aprendemos muito isto com as corridas de rua. Primeiro vamos sentindo cada parte do nosso corpo como se fossem membros desconectados, suas funções, demandas, exigências, a sincronicidade dos movimentos com a respiração, nossas dores, nossos limites e aquele desejo desconfortável dos iniciantes de chegar, custe o que custar. Somente quando conseguimos controlar este conjunto inicial de sentimentos é que nos damos conta de que existem belos cenários e paisagens que nos acolhem ao longo da nossa jornada esportiva. As cores e os aromas da primavera, os lindos dias de sol e as noites intermináveis do verão, as luzes singulares dos céus do outono e os desafios dos invernos rigorosos, são emoções que a gente só percebe quando corremos sem ter pressa para chegar. E, de repente, as corridas deixam de ser sofridas para serem longos passeios onde vamos aprendendo a ver, sentir e entender a beleza dos cenários e das paisagens, equilibrando corpo e mente, sentimento físico e psíquico, razão e emoção.

Somente então, aprendemos a correr, para não termos pressa. Portanto, menos angústia e tensão. Menos urgência e decisões superficiais. Menos pressa para chegar e mais atenção com a beleza do trajeto. Mais alegria, compartilhamento e mais planejamento estratégico de médio e longo prazo para seguir em frente e viver feliz e em paz.