sábado, 17 de janeiro de 2015

A Relevância da Arquitetura

Paul Goldberger

Como dica de leitura apresento hoje o livro “A Relevância da Arquitetura” escrito pelo crítico de arquitetura da revista The New Yorker e professor de design e arquitetura na The New School, em Manhattan, Paul Goldberger.

Mais que simples abrigo, as construções que nos rodeiam são – ou deveriam ser – experiências estéticas e humanas, sustenta o autor. Neste livro, ele mostra como a arquitetura é capaz de transcender sua função prática para provocar “deleite, tristeza, perplexidade e reverência”, analisando exemplos tão diversos quanto anônimos, galpões de beira de estrada e casas projetadas por nomes como Frank Lloyd Wright e Mies van der Rohe ou, ainda, a igreja barroca de Sant´Ivo, em Roma, e o contemporâneo Museu Guggenheim de Bilbao, entre muitos outros.

Nos sete capítulos do livro, Goldberger discute elementos como proporção, escala, espaço, textura, materiais, formas e luz. Explica, ainda, como a literatura, o cinema e a nossa própria memória particular são capazes de afetar a maneira como nos relacionamos com a arquitetura que nos cerca – e como ela, por sua vez, contribui para a formação de nossa identidade como indivíduos e como sociedade.

Estrutura do Livro

Introdução
1 – Significado, cultura e símbolo
2 – Desafio e conforto
3 – Arquitetura como objeto
4 – Arquitetura como espaço
5 – Arquitetura como memória
6 – As construções e o tempo
7 – Os prédios e a construção do lugar
Glossário
Comentário sobre a bibliografia
Agradecimentos
Índice remissivo
Crédito das imagens

É certo dizer que não viveríamos sem a arquitetura, mas não é apenas por isso que ela é importante. O objetivo do livro é explicar para que, além de nos proteger da chuva, servem as edificações. A arquitetura pode reivindicar a condição de algo necessário às nossas vidas, um reconhecimento que não é dado à poesia nem à literatura. Mas o abrigo proporcionado pelas construções não é o motivo pelo qual a arquitetura é relevante. Se fosse tão simples assim, não haveria mais nada a dizer.

A arquitetura começa a ter importância quando ultrapassa seu papel de abrigo contra as intempéries, quando começa a dizer algo sobre o mundo, quando começa a assumir as qualidades de arte. Em outras palavras, pode-se dizer que a arquitetura é o que ocorre quando se constrói com a consciência de fazer algo que supere, ao menos um pouco, a esfera prática, se relacionando intimamente à noção de que as edificações nos provocam reações de cunho emocional, nos fazendo sentir e pensar. Elas representam idéias sociais, são afirmações políticas e são ícones culturais.

Não obstante, as edificação também constituem uma evidência do poder da memória. Impossível ignorar as fortes sensações emocionais que são evocadas quando voltamos, após muitos anos, aos cenários dos acontecimentos marcantes de nossa existência: nossa casa da infância, nossa primeira escola, a casa dos nossos avós, a casa de veraneio, a casa sonhada do paraíso, imagem idealizada onde habitam os nossos sonhos e devaneios. Queiramos ou não, a arquitetura faz parte do dia a dia de todo o mundo.

A arquitetura assume as mais diferentes formas em diversas culturas, porém a natureza de nossa experiência diante de aspectos tão fundamentais como proporção, escala, espaço, textura, materiais, formas e luz não varia tanto quanto a aparência da própria arquitetura. Neste sentido, é a busca por compreender esses aspectos básicos o que mais interessa, na visão do autor, muito mais que qualquer teoria, dogma ou tradição cultural que afirme haver apenas uma única maneira aceitável de construir.

Nas palavras de Goldberger: “Não acredito que exista algo como uma receita universal da boa arquitetura. Mesmo em épocas dotadas de uma unidade estilística muito maior que a nossa sempre houve à disposição dos arquitetos mil maneiras de construir. Fico arrebatado pela boa arquitetura de qualquer estilo e de qualquer período, e, embora o foco deste livro seja quase que exclusivamente a arquitetura ocidental, o que afirmo sobre o espaço, o símbolo e a forma – e sobre como se relacionam as construções cotidianas e aquelas especiais – se aplica à arquitetura de todas as culturas.”

A arquitetura é sempre uma reação a limites – sejam eles limites físicos, financeiros ou exigências funcionais. Enquanto for encarada como pura arte ou como uma atividade meramente prática e funcional, jamais será compreendida de fato. E esta compreensão passa necessariamente pela experiência e pela vivência da arquitetura. Não unicamente acadêmica, mas aquela que é fruto da curiosidade, da vontade de olhar, tocar e sentir suas formas. Este livro se posiciona firmemente ao lado da experiência, provocando o leitor a caminhar pelas ruas e explorar seus vários sentidos em favor da percepção direta da realidade, ao invés de apenas tentar entender os edifícios e seus vários códigos e linguagens a partir apenas da leitura de uma obra de teoria ou de história da arquitetura. A vivência, na visão do autor, deve vir em primeiro lugar. As características estilistas, nomes de obscuras partes de ornamentos clássicos ou as datas de construção de algumas obras ou nascimento dos seus autores, podem sempre ser encontrados mais tarde nos livros.

A sensação emocionante de encontrar um espaço arquitetônico ou um edifício espacial – qual foi a nossa reação, como aquilo é recebido pelo olho, se arrepia nossos cabelos ou altera a nossa respiração – só pode ser entendida por meio de nossa presença no local. Tudo provoca alguma sensação. Não apenas as obras-primas, mas tudo o que é construído no mundo. É este o objetivo maior deste livro, entender como nos sentimos diante desse universo de construções, como a arquitetura nos afeta emocionalmente, para além do intelecto. Este livro não é uma obra de história da arquitetura, nem um guia de estilos, nem um dicionário de arquitetura, embora o leitor vá reconhecer elementos de cada um dos três. Sua mensagem maior é nos encorajar a olhar, e aprender, gradativamente, a confiar no nosso olhar. Olhar para a essência, e não para o detalhe estilístico superficial. Pensar na intenção, mas não dar demasiada atenção a ela, pois em seu nome já se fez mais má do que boa arquitetura. A intenção é o começo e não um fim em si mesmo.

Fica aí, então, mais esta dica de leitura para as férias!!



A Relevância da Arquitetura
Paul Goldberger
BEI Comunicação
São Paulo
2011

Paul Goldberger é crítico de arquitetura da revista The New Yorker e professor de design e arquitetura na The New School, em Manhattan, onde vive. Recebeu, em 1984, o prêmio Pulitzer, na categoria Crítica. É autor também de Christo and Jeanne-Claude (2010), Building Up and Tearing Down: Reflections on the Age of Architecture (2009), Up From Zero: Politics, Architecture, and the Rebuilding of New York (2004), Portraits of the New Architecture (2004) e The World Trade Center Remembered (2001), entre outros. A Relevância da Arquitetura é seu primeiro título publicado no Brasil.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Decora.do - Casa&Cia

COMUNICADO DO CAU/RS

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul comunica que possui, atualmente, um projeto junto ao Caderno Casa&Cia da Zero Hora, o chamado “Anuário”. Esta publicação reunirá os melhores projetos publicados por arquitetos e urbanistas no caderno durante o último ano. O CAU/RS e demais entidades apoiam essa iniciativa, haja vista que tem por objetivo a valorização profissional e a publicidade de bons projetos de arquitetura e de arquitetura de interiores.

Entretanto, não era de conhecimento do CAU/RS, até o presente momento, que a Casa&Cia, através da ZH, possuía o projeto DECORA.DO, plataforma na qual são ofertados serviços de reforma arquitetônica e de interiores por profissionais legalmente habilitados ou não a preços impraticáveis no mercado, que não seguem nenhuma tabela de honorários homologada pelas entidades de classe.

O CAU/RS esclarece que:

- As atividades ofertadas na plataforma ferem a Lei Federal 12.378/2010 e Resoluções do CAU/BR que regulamentam o exercício da arquitetura e urbanismo no Brasil
- O site fomenta a desvalorização profissional, o exercício ilegal da profissão e induz a infrações ao Código de Ética e Disciplina profissional
- Promove serviços prestados sem o devido acompanhamento profissional, principalmente no que tange à execução das obras, sem proporcionar segurança à sociedade

O CAU/RS comunica, portanto, que está ciente do presente fato e está trabalhando para tomar as providências cabíveis.
http://caurs.gov.br/?p=10102

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Amor Genuíno

Thich Nhat Hanh

Neste pequeno trecho de uma palestra do mestre Thich Nhat Hanh na Universidade de Stanford, ele fala de uma forma simples, lúcida e linda sobre os quatro elementos do amor genuíno: bondade amorosa, compaixão, alegria e da equanimidade (ou não discriminação ou inclusividade).

“O primeiro elemento do Amor Genuíno é a Bondade Amorosa, Maitri (em Sânscrito). Tem o poder de oferecer felicidade. Se o amor não puder oferecer felicidade, então não é amor de verdade. O amor genuíno oferece felicidade a si mesmo, a ele, a ela, a todos os outros. Não é a vontade de oferecer felicidade, porque se uma pessoa não entende a outra, quanto mais tenta fazê-la feliz, mais a faz sofrer. Então é preciso entender o sofrimento e a necessidade dele ou dela antes que você possa praticar a bondade amorosa. (…) Precisamos entender a outra pessoa para fazê-la realmente feliz. E é por isso que compreensão é a outra palavra para Amor, para a Compaixão. (…) E compreensão precisa de tempo, para poder observar, para observar profundamente.”

”Um dia o Buda estava segurando uma tigela de água com a sua mão esquerda e com a mão direita um punhado de sal. Ele jogou o sal na água e misturou, então perguntou aos monges: “Meus queridos amigos, vocês acham que eu posso beber essa água? Está tão salgada. Mas se você jogar essa água em um grande rio, ela não vai fazer a água do rio ficar salgada de forma alguma, e milhares de pessoas vão continuar a beber a água do rio. O mesmo acontece com alguém com um grande coração, um coração bom e cheio de compaixão, ele não sofre mais. As coisas que fazem as outras pessoas sofrerem não o faz sofrer. É como um punhado de sal, que pode salgar uma tigela de água, mas que não é capaz de fazer o grande rio sofrer, de maneira alguma.” Os quatro elementos do amor genuíno são ilimitados, porque amar dessa maneira vai fazer com que um dia você inclua todos os seres em seu coração. Você não ama somente humanos, mas animais, plantas e minerais. Os minerais também estão vivos e os minerais também podem sofrer. E esse é o amor que é recomendado pelo Buda, o amor sem fronteiras, sem discriminação, e o quarto elemento do amor genuíno é a inclusividade. Sem discriminação, de qualquer forma, preto ou branco, norte ou sul, rico ou pobre, todos estão ao alcance do seu amor.”

Thich Nhat Hanh

Um dos mais conhecidos e respeitados mestres Zen no mundo de hoje, poeta e militante da paz e dos direitos humanos, Thich Nhat Hanh (chamado de Thây por seus alunos) tem levado uma vida extraordinária. Nascido no Vietnã central em 1926, aos dezesseis anos entrou para a vida monástica. Desde então sua vida tem sido dedicada ao trabalho de transformação interior em benefício dos indivíduos e da sociedade. Poeta e ativista pela paz, trabalhou em sua juventude para que o budismo vivesse em harmonia, reconciliação e fraternidade com a sociedade vietnamita. Durante a guerra no Vietnam renunciou ao isolamento monástico para ajudar ativamente o seu povo e, desde então, tem sempre dado a prática religiosa um empenho social e político pela paz.

Quando ainda no Vietnã, exerceu o principal papel no “budismo engajado” – renovação religiosa da qual foram gerados inúmeros projetos, combinando ajuda às vítimas e oposição não violenta à guerra. Seu trabalho deu origem à Escola de Juventude para Serviços Sociais no Vietnã e à Universidade Van Hanh. "Budismo engajado”, como era conhecido esse movimento, segundo palavras do próprio Thich Nhat Hanh, “é um termo redundante, já que budismo significa estar consciente, estar desperto para o que está acontecendo no seu próprio corpo, sentimentos e mente, como também no mundo que o cerca. Se você está desperto, não pode agir de outra forma senão compassivamente para aliviar o sofrimento que vê ao redor. O budismo é, portanto, implicitamente engajado. Se não é engajado, não é budismo”.

É autor de numerosas obras (mais de 75 livros), todas em estilo simples e profundamente perceptivo, características fundamentais de um mestre zen. Procura mostrar o que é a meditação dirigida à compreensão. Para ele, compreender não é obra do pensamento que reflete, e sim da contemplação consciente que percebe e intui. Com seu estilo simples, profundo e compassivo, Nhat Hanh utiliza elementos da psicologia budista, da epistemologia e da física contemporânea, servindo-se de muitas historietas para acompanhar o leitor em sua Jornada da atenção consciente para o insight.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A Poética do Espaço

Gaston Bachelard

"Logicamente, é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas, e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida, em nossos devaneios. Neste teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço."
(Gaston Bachelard)

Neste livro o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), procedendo a uma específica análise de espaços e lugares, cria uma reflexão singular a que chama "Poética do Espaço". O livro tem como campo de exame e investigação as imagens do “espaço feliz”, objetivando determinar o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados. Tendo a casa – e seus espaços – como foco, além da proteção, significado basilar, ligam-se também valores imaginados, fantasiados, figurativos e simbólicos. O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão apenas da arquitetura. Trata-se de uma reflexão poética sobre a percepção do espaço vivido em todas as parcialidades da imaginação. Trata-se, portanto, de estudar a Casa do Paraíso que todos nós construímos diariamente nos devaneios do nosso coração.

Assim, a imagem poética do espaço segue uma linha que começa com a poética da casa, enquanto instrumento de proteção para a alma humana, partindo para os valores da casa primitiva dos homens (cabanas), a casa das coisas (gavetas, armários e cofres), os ninhos e conchas, dos cantos e esconderijos, até chegar aos espaços da imensidão e da miniatura, do aberto e do fechado e, por fim, ao valor ontológico das imagens e da fenomenologia do redondo enquanto movimento.

O livro aborda a questão da poética da casa, analisada nos horizontes teóricos mais diversos, onde a imagem da casa se torna a topografia do nosso ser íntimo. Há um sentido em considerar a casa como um instrumento de análise e reconhecimento da alma humana, dos seus sonhos concretos e seus desejos imaginários. Não somente as nossas lembranças como, também, nossos esquecimentos estão alojados na memória dos espaços onde crescemos, nos criamos e habitamos. Neste sentido, o conceito de habitar transcende o alojamento do nosso corpo físico e se derrama sobre os lugares onde habitam os devaneios do nosso inconsciente. Nosso inconsciente está alojado. Nossa alma é uma morada. E, lembrando-nos das casas, dos aposentos, aprendemos a morar em nós mesmos. Neste sentido, as imagens da casa se mostram como uma via de mão dupla: elas estão em nós tanto quanto estamos nelas. Não raro, reconhecemos que muito antes da casa estar concretamente construída no terreno, ela já abriga, enquanto projeção dos nossos desejos e necessidades, os sonhos mais reais de uma possível vida feliz. A casa, enquanto lar, deve ser construída no coração, muito antes de ser construída em algum terreno. Assim sendo, muitas vezes vivemos mais felizes na casa imaginária dos sonhos, do que na casa que concretamente nos abriga da chuva, do sol, do vento e do frio.

Na sequência, o livro discorre sobre uma série de imagens que podemos considerar como a casa das coisas: as gavetas, os cofres e os armários. Esses móveis trazem em si uma espécie de estética do oculto onde o espaço físico das gavetas – com seus objetos guardados ou imaginados – é facilmente associado, como metáfora, aos espaços ocultos da nossa alma com nossos cheios e vazios. Os devaneios da intimidade, representados pelos armários e suas prateleiras, as escrivaninhas e suas gavetas, os cofres e os fundos falsos sem restringir a memória a um armário de lembranças. O cofre e a fechadura, por outro lado, estão sob o signo do segredo, da alma fechada do ser fechado, está muito mais ligado ao signo do esconderijo e do mistério. Explicitam, por vezes, nossa necessidade de ter controle sobre as vivências e emoções, boas ou ruins, dando a cada uma deles um lugar organizado e indexado dentro das nossas memórias para que, a qualquer momento, possamos revisitá-las, reordená-las, com a segurança de que sabemos exatamente onde cada uma delas está.

De forma menos concreta e mais simbólica, surgem capítulos dedicados aos ninhos e às conchas – refúgios do vertebrado e do invertebrado – que dão testemunho de uma atividade imaginadora mal refreada pela realidade dos objetos. Nós, que por tanto tempo meditamos sobre a imaginação dos elementos, revivemos mil devaneios aéreos ou aquáticos ao acompanharmos os poetas até o ninho no alto das copas das árvores ou até essa natural caverna animal que é a concha, nas profundezas dos oceanos que definimos para cada um de nós. O ninho é um objeto externo que necessitamos construir. Nos exige a ação criadora e a iniciativa do querer fazer. Do juntar as partes e dar a forma que queremos. A concha é uma casa orgânica que cresce e se constrói na mesma medida que seu morador.

Não raro, encontramos nas próprias casas redutos e cantos onde gostamos de nos acomodar e nos encolher. Só habita com intensidade aquele que soube se encolher nos cantos da sua casa ou da sua alma. Estes nichos e cantos são os lugares recônditos onde guardamos nossos maiores segredos e desejos secretos. Onde guardamos nossas coisas mal - ou não - resolvidas, nossos projetos e desafios futuros, principalmente, àqueles que sabemos serem os mais difíceis e perturbadores. Os nichos e cantos, ao contrário das gavetas e prateleiras, são os espaços onde a poesia evoca e acomoda tudo aquilo que ainda não está realizado, resolvido ou arrumado. Temos em nós, a este respeito, todo um estoque de imagens e percepções sobre os cantos da nossa alma e as memórias de nossa vivência, onde cada canto é estruturado e dimensionado para abrigar cada uma das nossas emoções e sentimentos abandonados ou adormecidos. Nossa alma é nosso canto, nossa primeira casa.

Depois de discorrer sobre os espaços da intimidade, o livro foca na poética do espaço sob a ótica da dialética do grande e do pequeno, signos da Miniatura e da Imensidão. Em ambos os casos, o pequeno e o grande não devem ser entendidos em sua objetividade dimensional. O livro apenas os trata como dois polos de uma mesma projeção de imagens, onde a percepção e a definição de escala está em nós, no valor que damos aos fatos da nossa vida e não, necessariamente, ligada ao tamanho dos espaços, objetos ou desafios. Aquilo que para uns é um desafio imenso, para outros não passa de uma suave experiência do cotidiano. Tudo depende da perspectiva pela qual olhamos para o desafio. Depende dos anticorpos desenvolvidos, por um ou por outro, ao longo das várias experiências de vida. Depende da capacidade lúdica de cada um de suportar a dor e dobrar os medos. Neste sentido, o julgamento das ações do outro torna-se o pior conselheiro. A coragem não pode ser mensurada, não reside na velocidade das ações, mas na decisão do foco.

A partir deste ponto do livro torna-se imperioso discutir a dialética do interno e do externo, dialética que repercute na percepção do aberto e do fechado. Das relações entre o interior e o exterior, tanto dos espaços físicos, quanto da alma. De tudo aquilo que eu abro e, principalmente, para quem eu abro. Ou da necessidade defensiva de se fechar. Da ideia imaginária de um fechamento que é muito mais a ausência do descortinamento pleno do que a necessidade de controlar as relações entre as noções de estar dentro ou fora, de entrar e sair. No caso do exterior e do interior verificamos uma constante dialética, pois, diante da liberdade da poesia, ora o exterior representa a prisão ora o interior é a imensidão. A simples imagem da porta conduz tantos devaneios, instaura tantos desejos de vê-la aberta, de abrir o ser, de conquistar estes dois planos: o fechado e o aberto e o seu intermediário – o entreaberto. A metáfora que faz parte do senso comum de que quando uma porta de fecha outra se abre é imaginária justamente por não ser absoluta e sincronizada.

No capítulo final, o livro aborda a fenomenologia do redondo, que nos conduz à percepção poética do movimento constante da vida, "basta dar um passo e já não estamos no mesmo lugar", afastando-se diametralmente de toda a evidência e obviedade geométrica. A afirmação de que “provavelmente a vida é redonda”, pronunciada por Van Gogh, ou que “todo o ser parece em si redondo”, na fala de Jaspers, desperta uma indagação acerca da imagem poética do redondo como movimento das coisas, como conforto da linha curva e, principalmente, como fluxo contínuo não linear.

Como poderemos concluir ao longo da leitura do livro, a casa é um dos maiores poderes que permitem interligar os pensamentos, lembranças, desejos, aspirações e os sonhos do homem e os seus devaneios. A casa é vista, segundo Bachelard, como o grande berço, o aconchego e a proteção, a principal referência de ser e estar, desde o nascimento do homem. É o paraíso material, mas é, também, o paraíso espiritual. As lembranças da casa estão guardadas na memória, no inconsciente e acompanha-nos durante toda a vida e, sempre voltamo-nos a elas nos nossos pensamentos e devaneios.



A poética do Espaço
Gaston Bachelard
Martins Fontes
São Paulo
1988

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Steve Jobs

As verdadeiras lições de liderança

Este pequeno livreto escrito por Walter Isaacson (mesmo autor da Biografia de Steve Jobs, publicado pela Companhia das Letras em 2011) apresenta uma síntese das principais idéias de criação e gestão empresarial de Steve Jobs, um dos fundadores da Apple.

A síntese de sua história todos já conhecemos: ajudou a fundar a Apple na garagem dos pais em 1976, foi expulso da empresa em 1985, voltou para resgatá-la de uma crise criativa e de gestão que levou-a a beira da falência em 1997 e morreu em outubro de 2011, depois de transformá-la na companhia mais valiosa do mundo.

Nesta trajetória exitosa e experimental ajudou a transformar sete indústrias: computação pessoal, filmes de animação, música, telefonia móvel, tablets, lojas de varejo e publicação digital. Méritos que o elevaram ao panteão dos maiores inovadores americanos, ao lado de gigantes como Thomas Edison, Enry Ford e Walt Disney.

Muito se tem dito sobre a personalidade difícil de Steve Jobs. Mas era justamente esta personalidade forte sua principal característica na forma de fazer negócios. Agia com exagero e paixão, pouco convencionais, e com um intensidade que driblava constantemente a fronteira entre a vida pessoal e profissional. Estas características marcantes da personalidade de Jobs ficaram impressas em seus produtos mesclando petulância e impaciência ao perfeccionismo das suas criações.

Uma vez perguntado por Walter Isaacson sobre qual teria sido a sua criação mais importante, Jobs respondeu: "foi a empresa Apple, fundar uma companhia duradoura, era ao mesmo tempo mais difícil e mais importante do que criar um grande produto". As ideias apresentadas neste livreto são a síntese das chaves do seu grande sucesso.

1 – Foque

Concentre-se em poucos produtos, pois decidir o que não fazer é tão importante quanto decidir o que fazer e isso vale tanto para as empresas, quanto para os produtos. Jobs costumava levar um seleto time de seus melhores funcionários para um retiro criativo de ideias onde perguntava aos participantes: “quais as próximas dez coisas que devemos fazer?” Anotava todas as sugestões, riscava todas aquelas que pareciam as mais inadequadas até possuir uma lista com dez e anunciava riscando as sete últimas: “para nós bastam três.”

2 – Simplifique

Concentrar-se no essencial, buscando o fundamento, é o melhor exercício para a simplificação. Simplicidade é a maior sofisticação, declarava o primeiro folheto promocional da Apple. Seu interesse pela simplicidade em design foi forjado nas conferências de design a que assistiu no Aspen Institute, no final dos anos 1970, num Campus construído ao estilo Bauhaus, que ressaltava as linhas puras e o design funcional. Sempre buscou a simplicidade que vem da conquista da complexidade, e não do seu desconhecimento.

3 – Assuma a responsabilidade de ponta a ponta

Jobs soube que a melhor maneira de alcançar a simplicidade era fazer com que hardware, software e periféricos estivessem perfeitamente integrados, formando um verdadeiro ecossistema Apple. Para tal, era necessário fazer o que nenhuma outra empresa do setor fazia: assumir toda a responsabilidade de ponta a ponta pela experiência do usuário.

4 – Quando ficar para trás, pule por cima

A marca de uma empresa inovadora não é apenas apresentar ideias novas antes das concorrentes. É, também, saber dar um pulo por cima quando sente que ficou para trás. De nada adianta empenhar esforços para alcançar a concorrência. É preciso estar sempre na dianteira, prevendo qualquer movimento das empresas e do mercado, capaz de representar algum risco.

5 – Coloque os produtos à frente dos lucros

Quando Jobs e sua equipe projetaram o Macintosh original, no começo dos anos 1980, sua missão era fazer algo “absurdamente bom”, sem maximização de lucros ou decisões de bom custo-benefício. Em suas palavras: “não se preocupe com o preço, apenas especifique as funcionalidades do computador. E o mais importante, não faça concessões.” Quando a Apple entrou em um declínio lento e constante, entre os anos de 1983 a 1993 Jobs disse: “Tenho minha própria teoria sobre a razão do declínio de empresas. Começam fazendo ótimos produtos, mas então o pessoal de vendas e marketing toma conta, pois eles querem obter lucros. Quando o pessoal de vendas dirige uma empresa, o produto deixa de ter importância.”

6 – Não vire escravo de grupos de discussão

Quando Jobs levou a equipe original do Macintosh para o primeiro retiro, um dos membros da euipe lhe perguntou se podiam fazer alguma pesquisa de mercado para ver o que os consumidores queriam. Sua resposta foi não: “as pessoas não sabem o que querem até que a gente mostre a elas.” Entender profundamente o que os consumidores querem é muito diferente de viver perguntando o que desejam, requer intuição (instinto baseado na sabedoria acumulada pela experiência) e instinto para desejos ainda sem forma.

7 – Transforme a realidade

A famosa capacidade de Jobs de forçar as pessoas a fazerem o impossível era conhecida pelos colegas como seu “campo de distorção da realidade”. Nas palavras de Debi Coleman: “você fazia o impossível, porque não percebia que era impossível.” Muito tem se dito que o campo de distorção da realidade de Jobs era um eufemismo para sua tendência à intimidação e à mentira, mas seus colaboradores mais próximos admitiram se tratar de um traço de seu caráter que os levava a realizar façanhas extraordinárias, inspirando sua equipe e levando-os a mudar os rumos da história da computação, por achar que as regras normais da vida não se aplicavam a ele.

8 – Impute

Jobs sabia que as pessoas formam sua opinião sobre um produto ou empresa com base na maneira como ele é apresentado. Uma das grandes obsessões de Jobs era o desenho das embalagens de seus produtos. Gastava muito tempo desenhando e redesenhando pessoalmente as caixas que embalariam o iPod e o iPhone, como se fossem verdadeiras caixinhas de jóias. Para ele, desempacotar um produto era um ritual que anunciava as glórias do produto.

9 – Incentive a perfeição

Na fase de desenvolvimento de quase todos os produtos que criou, Jobs, em certo ponto paralisava o processo e voltava à prancheta, sabendo que somente desta maneira o produto ficaria perfeito. Pouco antes de lançar as lojas da Apple, Jobs tomou a repentina decisão de adiar a abertura da primeira loja por alguns meses, para que seu leiaute fosse reconfigurado em torno das atividades que as pessoas poderiam querer fazer na loja e não apenas dos produtos. Seu perfeccionismo estendia-se até as partes ocultas de um produto. Queria que os chips existentes na placa de circuito no interior da máquina ficassem rigorosamente alinhados e a placa tivesse boa aparência, mesmo diante do fato das máquinas ficarem hermeticamente fechadas. Os engenheiros deveriam se sentir como artistas e após o redesenho das placas mandou que eles assinassem seus nomes para gravá-los dentro da caixa.

10 – Só admita jogadores de primeira

Jobs tinha fama de impaciente, petulante e duro com as pessoas à sua volta. Mas seu jeito de tratá-las, apesar de não ser nada louvável, vinha de sua paixão pela perfeição e do desejo de só trabalhar com os melhores profissionais. Em suas palavras: “não acho que trato ninguém com desprezo, mas se algo não preta, digo na cara. Minha tarefa é ser honesto.” Era sua maneira de prevenir que pessoas medíocres se sentissem à vontade para continuar. Não devemos esquecer que a grosseria e aspereza de Jobs vinham junto com sua capacidade de inspirar as pessoas. Ele dizia: “aprendi com os anos que, quando você tem pessoas realmente boas, não precisa tratá-las feito crianças.”

11 – Converse cara a cara

Embora fosse um cidadão do mundo digital, Jobs era adepto fervoroso de encontros ao vivo. Disse ele: “existe uma tentação em nossa era digital de pensar que as ideias podem ser desenvolvidas por e-mail e no ichat. Loucura. A criatividade vem de encontros espontâneos, de conversas aleatórias. A gente encontra alguém por acaso, pergunta o que anda fazendo, diz uau, e logo começa a borbulhar todo tipo de ideia." Esta ideia foi levada ao extremo no projeto de arquitetura dos edifícios das empresas. Foram projetados com o propósito de oportunizar os encontros e colaborações imprevistas: “se um prédio não estimula isso, você perde um monte de inovações e toda a magia que nasce com um achado feliz. Então projetamos um edifício para que as pessoas saiam de seus escritórios e encontrem no saguão central outras pessoas que não encontrariam de outra maneira.”

12 – Conheça o todo e os detalhes

A paixão de Jobs era aplicada tanto nos grandes assuntos como nos pequenos. Ao mesmo tempo em que se concentrava nos pormenores do design de algum produto, concebia as estratégias mais abrangentes.

13 – Combine humanidades com ciências

Jobs conseguiu ligar humanidades a ciências, criatividade a tecnologia, artes a engenharia, dentro de uma visão sistêmica onde o todo passou a ser mais importante que as partes. E fez isto com raro senso intuitivo de estratégia comercial. Na maioria dos lançamentos dos produtos da Apple, em sua última década de vida, Jobs terminava a apresentação com um slide simples mostrando uma placa de rua contendo a intersecção entre duas ruas: artes liberais e tecnologia.

14 – Continue faminto, continue louco

A personalidade de Jobs foi moldada por dois grandes movimentos sociais no final dos anos 1960. O primeiro, a contracultura dos Hippies e militantes pacifistas, marcada pelas drogas psicodélicas, pelo rock e pelo antiautoritarismo. O segundo, a subcultura high-tech e hacker do vale do silício, cheia de wireheads, phreakers, cyberpunks, engenheiros, nerds, aficionados e empresários de garagem. Sobrepondo-se a tudo isso, havia vários movimentos de autorrealização buscando caminhos para a iluminação pessoal – zen e hinduísmo, meditação e ioga, entre outros. Em todos os aspectos de sua vida – as mulheres com quem saiu, a reação ao diagnóstico de câncer, o jeito de administrar os negócios – seu comportamento refletiu as contradições, a confluência e, finalmente, a síntese desses diferentes elementos.

“Pense diferente: isto é para os loucos, os desajustados, os rebeldes, os encrenqueiros, os pinos redondos em buracos quadrados. E, enquanto alguns os julgam loucos, nós os julgamos gênios. Porque as pessoas que são suficientemente loucas para achar que podem mudar o mundo são aquelas que o mudam.”
(Comercial “Pense diferente” da Apple, 1997)



Steve Jobs
As verdadeiras lições de liderança
Walter Isaacson
Tradução Berilo Vargas
Portfólio Penguin
Primeira Edição
São Paulo
2014

Walter Isaacson é diretor-geral do Aspen Institute, foi presidente da CNN e editor executivo da Revista Time. É autor de Benjamin Franklin: An american life e Kissinger: A biography. A Companhia das Letras já publicou Einstein – Sua vida, seu universo e o Best-Seller Steve Jobs.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Os Cinco Agregados

De acordo com o budismo, os seres humanos são compostos de Cinco Agregados (skandhas): forma, sensações, percepções, formações mentais e consciência. Os Cinco Agregados contêm em si tudo o que existe, tanto dentro como fora de nós, na natureza e na sociedade.

Primeiro Agregado - Forma (rupa)

Significa o nosso corpo, incluindo os cinco órgãos dos sentidos e o sistema nervoso. Não se esqueça de cuidar bem de seu corpo, dando a ele tempo de descanso, e abraçando-o com carinho, compaixão, atenção e amor. Aprenda a considerar seu corpo como um rio, no qual cada célula é comparável a uma gota de água. A todo instante as células estão nascendo e morrendo. O nascimento e a morte se apoiam mutuamente. Para praticar a atenção plena ao corpo, siga o ritmo da respiração e focalize a atenção em cada parte do corpo, desde o cabelo no alto da cabeça até as solas dos pés.

Respire sempre com atenção plena e abrace cada parte do corpo com a energia da atenção plena, sorrindo com reconhecimento e amor. Buda disse que existem trinta e duas partes no corpo que devem ser reconhecidas e abraçadas. Identifique os elementos que fazem parte de seu corpo: terra, água, ar e calor. Entenda a ligação que existe entre esses quatro elementos dentro e fora de seu corpo. Veja a presença viva de seus ancestrais e também das gerações futuras, além de todos os outros seres dos reinos animal, vegetal e mineral. Tome consciência das posições de seu corpo (de pé, sentado, caminhando, deitado) e dos seus movimentos (dobrado, esticado, tomando banho, vestindo-se, comendo, trabalhando, etc.). Quando você dominar bem essa prática, conseguirá identificar as sensações e percepções no momento em que surgem, sendo capaz de praticar com atenção, olhando profundamente.

Observe a natureza impermanente e interdependente de seu corpo, observe que ele não tem uma entidade permanente. Assim, você não mais se identificará com o corpo nem o considerará como sendo o “eu”. Veja seu corpo como uma formação, vazio de substância própria que possa ser denominada “eu”. Veja o corpo como um oceano cheio de ondas ocultas e monstros marinhos. Por vezes, o oceano pode se mostrar calmo, mas em outros momentos é surpreendido por uma tempestade. Aprenda a acalmar as ondas e dominar os monstros marinhos, sem se deixar arrastar nem ser apanhado por eles. Através da prática da observação profunda, o corpo deixa de ser um agregado de apegos e desejos (upadana skandha), e você conquista a liberdade, para que nunca mais se sinta prisioneiro do medo.

Segundo Agregado - Sensações (vedana)

Existe um rio de sensações dentro de nós, e cada gota desse rio representa uma sensação. Para observar nossas sensações, sentamo-nos na margem do rio e identificamos cada uma à medida que passa por nós. Pode ser agradável desagradável ou neutra. Uma sensação qualquer permanece por algum tempo, e a seguir surge outra. A meditação implica ter consciência de cada uma dessas sensações. Reconhecê-la, sorrir para ela, contemplá-la e acolhê-la com todo o coração. Se continuarmos com a contemplação, descobriremos a verdadeira natureza da sensação, e não teremos mais medo, nem mesmo quando for uma sensação dolorosa. Saberemos que somos muito mais do que as nossas sensações, e que somos capazes de acolher cada sensação e lidar com ela.

Ao contemplar profundamente cada sensação, identificamos suas raízes dentro do corpo, das nossas percepções e da nossa consciência profunda. A compreensão de uma sensação é o início de sua transformação. Aprendemos a acolher até mesmo as emoções mais fortes, usando a energia da atenção plena, até que elas se acalmem. Praticamos a respiração consciente, focalizando a atenção no abdome, que se eleva e se retrai a cada respiração. Cuidamos de nossas emoções da mesma forma que cuidaríamos de um irmão ou irmã pequenos, se fosse preciso.

Praticamos olhando profundamente nossas sensações e emoções, para identificar os nutrientes que as alimentaram. Sabemos que se formos capazes de ingerir nutrientes melhores, nossas sensações e emoções mudarão. Nossas sensações são apenas formações, impermanentes e sem substância. Aprendemos a não nos identificar com elas, a não considerá-las como nós mesmos, a não nos refugiar nelas, e a não morrer por causa delas. Esta prática nos ajuda a cultivar o destemor, e nos liberta do hábito de ficar agarrados às coisas, até mesmo ao sofrimento.

Terceiro Agregado - Percepções (samjna)

Dentro de nós corre um rio de percepções. Elas surgem, permanecem por algum tempo, e depois desaparecem. O agregado da percepção é composto da ação de prestar atenção, de nomear, formular conceitos, e também daquele que percebe e daquele que é percebido. Quando percebemos algo, normalmente distorcemos o que foi percebido, o que costuma ocasionar diversos sentimentos dolorosos. Nossas percepções são frequentemente errôneas, e quem sofre com isso somos nós. É muito útil contemplar a natureza de nossas percepções sem muitas certezas. Quando temos certezas demais, acabamos sofrendo. Uma pergunta que se revela muito útil é: “Será que tenho certeza disto?” Se nos fizermos sempre esta pergunta, há uma boa oportunidade de olhar novamente e verificar se nossa percepção original estava errada. Aquele que percebe e aquilo que é percebido são inseparáveis. Quando alguém percebe erroneamente, a coisa percebida também está incorreta.

Um homem estava remando seu barco correnteza acima quando de repente viu outro barco vindo em sua direção. Gritou diversas vezes “Cuidado, cuidado!”, mas o outro barco continuou sem se desviar, até colidir, quase afundando o seu barco. O homem ficou furioso e começou a gritar, mas ao olhar melhor constatou que não havia ninguém no outro barco. O barco estava desgovernado, descendo o rio à deriva, e o homem acabou dando boas gargalhadas. Quando nossas percepções são corretas, elas fazem com que nos sintamos melhor, mas quando estão erradas, geram inúmeras e desagradáveis sensações. Temos que observar as coisas com atenção, para evitar sofrimento ou sensações difíceis. A percepção é um elemento fundamental do nosso bem-estar.

Nossas percepções são condicionadas pelas aflições já presentes em nós: a ignorância, os desejos, o ódio, a raiva, o ciúme, o medo, a força do hábito etc. Percebemos os fenômenos sempre através de nossa falta de compreensão da impermanência e da interdependência das coisas. Ao praticar a atenção plena, a concentração e o olhar em profundidade, descobrimos os erros contidos em nossas percepções e nos livramos do medo e do apego. Todo sofrimento nasce de percepções errôneas. A compreensão, que é o fruto da meditação, pode dissolver nossas percepções enganosas e nos liberar. Temos que estar sempre alertas, para não nos refugiar nas percepções. O Sutra do Diamante nos lembra: “Onde há uma percepção, há um engano”. Seria ótimo se conseguíssemos substituir as percepções por prajna, a visão verdadeira, a sabedoria real.

Quarto Agregado - Formações mentais (samskara)

Qualquer coisa que seja feita de outro elemento é uma “formação”. Uma flor é uma formação, porque ela é feita de luz do sol, de nuvens, sementes, terra, minerais, jardineiros etc. O medo também é uma formação, uma formação mental. Nosso corpo é uma formação física. Sensações e percepções são formações mentais, mas como são muito importantes, receberam uma categoria própria. De acordo com a Escola Vijnanavada, originária da linha de Transmissão do Norte, existem cinquenta e uma categorias de formações mentais.

O Quarto Agregado consiste em quarenta e nove dessas formações mentais (excluindo-se as sensações e as percepções). Todas as cinquenta e uma formações estão presentes dentro da consciência armazenadora, sob a forma de sementes (bijas). Cada vez que uma semente é afetada, ela se manifesta nas camadas superiores da nossa consciência (mente consciente) como uma formação mental. Nossa prática consiste em estar consciente dessas manifestações, bem como da presença das formações mentais, contemplando-as em profundidade para observar sua verdadeira natureza. Como já sabemos que todas as formações mentais são impermanentes e sem substância real, não nos identificaremos com elas nem buscaremos refúgio nelas. Com a prática diária, poderemos nutrir e desenvolver formações mentais saudáveis, transformando as não saudáveis. O resultado dessa prática será a liberdade, a ausência de medo e a paz interior.

Quinto Agregado - Consciência (vijnana)

A palavra consciência nesse contexto significa a consciência armazenadora, aquilo que está por baixo de tudo o que somos, o alicerce sobre o qual erigimos nossas formações mentais. Quando as formações mentais não estão manifestadas, estão armazenadas na consciência armazenadora (alayavijnana) sob a forma de sementes – sementes de alegria, paz, compreensão, esquecimento, ciúme, medo, desespero, e assim por diante. Da mesma forma que existem cinquenta e uma categorias de formações mentais, existem cinquenta e uma categorias de sementes enterradas profundamente no solo de nossa consciência. Cada vez que regamos uma delas, ou permitimos que outra pessoa as irrigue, essa semente vai se manifestar e se tornar uma formação mental. Temos que ter cuidado na escolha das sementes a serem regadas por nós e pelos outros. Se deixarmos que as sementes negativas cresçam, eventualmente seremos arrastados por elas. O Quinto Agregado, a consciência, contém em si todos os outros agregados e é a base de sua existência.

A consciência é, ao mesmo tempo, coletiva e individual. O coletivo é feito daquilo que é individual, e o individual é feito do coletivo. Nossa consciência pode ser transformada através da prática do consumo cônscio, do uso consciente dos sentidos e da contemplação profunda. A prática deve se voltar para a transformação tanto dos aspectos individuais quando dos aspectos coletivos da consciência. É essencial praticar em companhia da Sangha, para poder produzir essa transformação. Quando as aflições que existem dentro de nós são transformadas, nossa consciência se converte em sabedoria, emitindo a luz que indica o caminho da libertação, tanto para indivíduos quando para toda a sociedade.

Os Cinco Agregados são interdependentes. Quando nos ocorre uma sensação dolorosa, devemos olhar para o corpo, para as nossas percepções, nossas formações mentais e nossa consciência, procurando a causa dessa sensação. Se tivermos uma dor de cabeça, a sensação dolorosa vem do Primeiro Agregado. Sensações dolorosas também podem se originar das formações mentais ou das percepções. Você pode, por exemplo, pensar que alguém o detesta, quando na verdade essa pessoa o ama.

Observe com atenção os cinco rios que correm dentro de você e veja como cada um deles contém em si os outros quatro. Olhe para o rio do corpo. No início você pode achar que o corpo é apenas físico e não mental. Só que cada célula de seu corpo contém dentro dela todas as informações contidas no seu corpo inteiro. Hoje em dia já é possível duplicar o corpo inteiro a partir de uma única célula, o que chamamos de clonagem. A unidade contém o todo. Uma única célula do seu corpo contém seu corpo inteiro. Isso significa que todas as sensações, percepções, formações mentais e consciência estão contidas em uma única célula – não apenas os nossos, mas também os de nossos pais e de nossos ancestrais. Cada agregado contém todos os outros agregados. Cada sensação contém em si todas as percepções, formações mentais e consciência. Ao observar uma sensação, podemos descobrir nela os outros elementos. Observe à luz da interdependência, e verá o todo na unidade e a unidade no todo. Não pense nem por um instante que o corpo existe fora das sensações ou que as sensações existem fora do corpo.

No Sutra Girando a Roda, o Buda diz: “Quando nos apegamos aos Cinco Agregados, eles produzem sofrimento”. Ele não disse que os agregados são, por si mesmos, o sofrimento. Há uma imagem no Sutra Ratnakuta que nos pode ser útil. Um homem joga um bolo de terra para um cachorro. O cachorro olha para o bolo de terra e late furiosamente, porque não entende que é o homem, e não o bolo de terra, o responsável por sua frustração. O sutra continua: “Da mesma maneira, uma pessoa comum, presa a conceitos dualistas, pensa que os Cinco Agregados são a causa de seu sofrimento, enquanto na verdade a raiz do sofrimento está na falta de compreensão da natureza impermanente, sem existência separada, e interdependente dos Cinco Agregados”. Não são os Cinco Agregados que nos fazem sofrer, mas a forma como nos relacionamos com eles. Ao observarmos a natureza impermanente, interdependente e sem existência própria de tudo o que existe, não sentimos aversão pela vida, mas, ao contrário, constatamos como a vida é preciosa.

Sempre que não entendemos muito bem, apegamo-nos demais, ficando presos às coisas. No Ratnakuta Sutra, os termos “agregado” (skandha) e “agregado do apego” (upadana skandha) são usados. Os skandhas são os Cinco Agregados que dão origem à vida. Upadana skandhas são os mesmos Cinco Agregados vistos como objetos de apego. A raiz de nosso sofrimento não está nos agregados em si, mas em nosso apego. Existem pessoas que, devido à compreensão incorreta da razão do sofrimento, em vez de lidarem com seus apegos, têm medo dos seis objetos dos sentidos e aversão pelos Cinco Agregados. Um Buda é alguém que vive em paz, alegria e liberdade, alguém que não tem medo nem está apegado a nada.

Quando inspiramos e expiramos e harmonizamos os Cinco Agregados dentro de nós, realizamos a verdadeira prática. Mas praticar não significa nos limitarmos aos Cinco Agregados internos. Temos consciência de que os Cinco Agregados também têm raízes na sociedade, na natureza e nas pessoas com quem vivemos. Medite no conjunto dos Cinco Agregados dentro de você, até poder ver a unidade que existe entre você e o universo. Quando o Bodhisattva Avalokita contemplou a realidade dos Cinco Agregados, viu o vazio do “eu”, e se libertou do sofrimento. Se contemplarmos os Cinco Agregados com consistência, nós também nos libertaremos do sofrimento. Se os Cinco Agregados retornarem à sua origem, o sentido de “eu” deixa de existir. Enxergar a unidade dentro do todo significa romper com o apego a uma falsa ideia de “eu”, a convicção de que o “eu” é uma entidade imutável com existência própria. Romper essa falsa visão significa se libertar de todos os tipos de sofrimento.

A essência do ensinamento de Buda
Thich Nhat Hahn

domingo, 4 de janeiro de 2015

As Quatro Nobres Verdades

Ao iluminar-se, o Buda viu que o universo dos fenômenos funciona de acordo com a verdade da Gênese Condicionada. Quando decidiu ensinar o que tinha visto, o Buda percebeu que a Gênese Condicionada seria de difícil compreensão e poderia até gerar medo se fosse explicada de pronto. Por isso, em vez de começar pela Gênese Condicionada, o Buda ensinou primeiro as Quatro Nobres Verdades. As Quatro Nobres Verdades não diferem da verdade da Gênese Condicionada e, por certo, não a contradizem. Elas simplesmente dirigem o foco da Gênese Condicionada para a vida humana, fazendo com que esta pareça mais relevante para as pessoas e fique mais fácil de entender.

As Quatro Nobres Verdades são:

- verdade do sofrimento
- verdade da origem do sofrimento
- verdade da cessação do sofrimento
- verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento

A palavra “sofrimento” nesse contexto é a tradução consagrada do sânscrito dukkha, cujo significado mais aproximado seria o de “insatisfação”.

Significado Profundo das Quatro Nobres Verdades

O uso da palavra “verdade” nas “Quatro Nobres Verdades” é explicada da seguinte maneira no Shastra Yogacharabhumi (Tratado sobre os Estágios da Prática da Ioga): “Da verdade do sofrimento à verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento, não há nada que seja falso ou enganoso e, portanto, tudo isso é considerado verdadeiro”. O mesmo livro explica a palavra “nobre”, nas “Quatro Nobres Verdades” deste modo: “Somente os nobres conseguem compreender essas verdades e contemplá-las. Os ignorantes não conseguem compreendê-las ou contemplá-las. Portanto, essas verdades são chamadas Nobres Verdades”.

As Quatro Nobres Verdades estão no cerne da vida. Explicam todos os estados de consciência existentes no universo e ensinam como se libertar de todas as formas de ilusão. É necessário sabedoria para compreender as Quatro Nobres Verdades. A primeira verdade diz que a vida é cheia de sofrimento. A segunda, que o sofrimento é causado por nosso apego à ilusão. A terceira verdade diz que a iluminação, ou a total libertação do sofrimento, é possível. A última diz como alcançar a iluminação. As duas primeiras Nobres Verdades têm relação de causa e efeito entre si. A primeira é o efeito, a segunda é a causa. Igual relação existe entre a terceira e a quarta, sendo a terceira o efeito causado pela quarta.

À primeira vista, cabe perguntar por que o Buda colocou as Quatro Nobres Verdades nessa ordem? Não pareceria mais lógico que a segunda e a quarta verdades, ambas causas, viessem antes da primeira e da terceira, que são os efeitos? Ainda que em ordem diferente, as Quatro Nobres Verdades continuariam sendo compreensíveis. Contudo, a sequência escolhida pelo Buda permite que as verdades sejam ensinadas da forma mais eficaz possível.

Para a maioria das pessoas, é mais fácil entender primeiro o efeito, depois sua causa. Por isso, o Buda apresentou primeiro a verdade do sofrimento e depois explicou a causa do sofrimento. Assim que se compreendem as duas primeiras Nobres Verdades, é natural querer se libertar delas. Para ajudar-nos a entender como alcançar essa libertação, o Buda ensinou a Terceira Nobre Verdade, que é a cessação do sofrimento, e por fim a Quarta Nobre Verdade, que é o caminho para a cessação do sofrimento.

O Buda começou por descrever o problema, depois explicou sua causa. Em seguida, contou a solução do problema e ensinou como chegar à solução. Um elemento fundamental dos ensinamentos do Buda é a imensa compaixão que transparece na elaboração de explicações, feitas de modo a serem compreendidas por qualquer pessoa que realmente se empenhe. A Gênese Condicionada e as Quatro Nobres Verdades são verdades muito profundas. Aquele que as estudar longamente vai perceber quão inteligente e quão compassivo foi o Buda, ao conseguir explicá-las de forma tão clara.

A Primeira Nobre Verdade
A Primeira Nobre Verdade é a verdade do sofrimento. O Buda viu com perfeita clareza algo que as pessoas vislumbram ocasionalmente: não é possível ao ser humano conquistar total satisfação neste mundo. O sofrimento é descrito de muitas formas diferentes nos sutras budistas.

As três formas fundamentais são:

- Os dois sofrimentos: os dois sofrimentos são o interno e o externo, sendo esta a classificação mais elementar encontrada nos sutras budistas. Essa é a maneira mais básica de compreender o sofrimento. Sofrimentos internos são aqueles que geralmente consideramos parte de nós, como dor física, ansiedade, medo, ciúme, suspeita, raiva e assim por diante. Sofrimentos externos são aqueles que parecem vir de fora, incluindo vento, chuva, frio, calor, seca, animais selvagens, catástrofes naturais, guerras, crimes e assim por diante. Não é possível evitar nenhum dos dois tipos.

- Os três sofrimentos: esta é uma classificação baseada mais na qualidade do sofrimento do que em sua origem ou tipo. O primeiro dos três sofrimentos é o inerente, aquele a que estamos sujeitos pelo simples fato de estarmos vivos. O segundo é o sofrimento latente, aquele que está presente mesmo nos momentos mais felizes: coisas se quebram, pessoas morrem, tudo envelhece e se deteriora, até os melhores momentos chegam ao fim. O terceiro sofrimento é o ativo, causado por estarmos presos em um mundo de ilusão constantemente mutável. No mundo da ilusão, temos pouco ou nenhum controle sobre nossa vida. Sentimos ansiedade, medo e impotência à medida que vemos tudo se transformando de um dia para o outro.

- Os oito sofrimentos: os oito sofrimentos descrevem de modo mais detalhado o sofrimento a que estão sujeitos todos os seres e são classificados com base naquilo que os define.

São eles:

1 - Nascimento: após vários meses dentro do ventre da mãe, finalmente, sentimos a dor e o medo do nascimento. Depois disso, tudo pode acontecer. Somos como prisioneiros do corpo e do mundo onde nascemos.

2 - Envelhecimento: se formos, suficientemente, afortunados para não sermos mortos na juventude, teremos de enfrentar o processo de envelhecimento, sofrer a deterioração do corpo e da mente enquanto assistimos o desaparecimento de nossos amigos, um por um.

3 - Doença: a saúde é um prazer por ser tão contrastante com a doença. Todos, em algum momento, sofrem a dor e a humilhação da doença.

4 - Morte: mesmo que a vida seja considerada perfeita, a morte é inevitável. A morte, quando não é repentina e aterradora, é geralmente lenta e dolorosa. Somos como folhas ao vento. Ninguém sabe o dia de amanhã.

5 - Perda de um amor: às vezes, perdemos alguém que amamos, outras vezes nosso amor não é retribuído. Não existe quem não sofra por não poder estar sempre com aqueles que ama.

6 - Ser odiado: ninguém quer inimigos, entretanto é difícil evitá-los neste mundo.

7 - Desejo não realizado: nossos anseios e desejos determinam em grande medida quem somos. Limitam nossa capacidade de entender o Darma, além de nos causar infindáveis problemas. E, o que é pior, a maioria deles jamais chega a ser satisfeita, causando-nos duas vezes mais problemas.

8 - Os Cinco Skandhas: forma, sensação, percepção, atividade e consciência. Eles constituem os tijolos da existência consciente e o meio para a manifestação do sofrimento. Os Cinco Skandhas são como uma fonte ilimitada de combustível a gerar dor e sofrimento, vida após vida.

Causas fundamentais do sofrimento

- O Eu não está em perfeita harmonia com o mundo material. É necessário esforço constante para encontrarmos conforto neste mundo. O clima é sempre quente demais ou frio demais, nossas posses exigem cuidado constante, nossa casa é muito velha ou muito pequena, as ruas são muito barulhentas, os sapatos se gastam e assim por diante. O mundo material raramente se apresenta da forma como gostaríamos que fosse.

- O Eu não está em perfeita harmonia com as outras pessoas. Na maioria das vezes, não podemos estar na companhia daqueles com quem gostaríamos de estar, mas somos obrigados a suportar a presença de pessoas com as quais temos dificuldade de relacionamento. Não raro somos até mesmo forçados a conviver com pessoas que abertamente não gostam de nós.

- O Eu não está em perfeita harmonia com o corpo. O corpo nasce, envelhece, adoece e morre. O EU tem pouco ou nenhum controle sobre esse processo.

- O Eu não está em perfeita harmonia com a mente. Nossa mente está frequentemente além do nosso controle, disparando de uma ideia para outra como um cavalo selvagem ao vento. A atividade mental iludida é a fonte de todo o nosso sofrimento.

- O Eu não está em perfeita harmonia com os seus desejos. O EU pode compreender que os desejos geram carma e sofrimento, mas isso não significa que seja capaz de controlá-los com facilidade. O autocontrole é difícil justamente porque o que queremos com mais intensidade nem sempre é o que sabemos ser o melhor para nós. Se nem mesmo tentarmos controlar nossos desejos e deixarmos que eles tomem conta de nós, o EU sofrerá ainda mais.

- O Eu não está em perfeita harmonia com as suas opiniões. Basicamente, isso significa que nossas opiniões são erradas. Quando nossas crenças não estão alinhadas com a verdade, causamos a nós próprios infindáveis problemas, pois teremos a tendência de repetir os mesmos erros muitas vezes.

- O Eu não está em perfeita harmonia com a natureza. Chuva, enchentes, secas, tempestades, maremotos e todas as outras forças da natureza não estão sob nosso controle e podem, frequentemente, nos fazer sofrer.

O Buda ensinou a verdade do sofrimento não para nos fazer desesperar, mas para nos ajudar a reconhecer com clareza as realidades da vida. Compreendendo o alcance do sofrimento e a impossibilidade de evitá-lo, devemos nos sentir inspirados a superá-lo. Reconhecer a Primeira Nobre Verdade é o primeiro passo de um processo que deve nos levar a querer compreender a Segunda Nobre Verdade.

A Segunda Nobre Verdade
A Segunda Nobre Verdade é a verdade da origem do sofrimento, que está na cobiça, na raiva e na ignorância. Os seres sencientes acorrentam-se ao penoso e ilusivo mundo dos fenômenos, por causa de seu forte apego a essas fontes de ilusão, também conhecidas como os Três Venenos (cobiça, raiva e ignorância).

A Terceira Nobre Verdade
A Terceira Nobre Verdade é a verdade da cessação do sofrimento. Cessação do sofrimento é o mesmo que nirvana, um estado que não pode ser descrito por meio de palavras. É algo que está além de cobiça, raiva, ignorância e sofrimento, além da dualidade e das distinções entre certo e errado, você e os outros, bem e mal, vida e morte.

A Quarta Nobre Verdade
A Quarta Nobre Verdade é a verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento, aquele que nos mostra como superar as causas do sofrimento. É o caminho rumo ao nirvana. A forma mais simples de superar as causas do sofrimento é seguir o Nobre Caminho Óctuplo.

A Importância das Quatro Nobres Verdade
As Quatro Nobres Verdades foram os primeiros e também os últimos ensinamentos do Buda. Ao aproximar-se do momento de sua morte, o Buda disse aos discípulos que, se tivessem alguma dúvida quanto à validade das Quatro Nobres Verdades, deveriam se pronunciar, pois assim poderiam obter as respostas antes que fosse tarde demais. A atenção que o Buda devotou às Quatro Nobres Verdades nos 45 anos em que se dedicou a ensinar assinala a importância que atribuía a elas.

O Buda é algumas vezes chamado de “O grande médico”, uma vez que os seus ensinamentos podem nos curar do nosso apego doentio à ilusão. A melhor forma de acabar com o sofrimento é compreender bem as Quatro Nobres Verdades, porque, depois disso, será muito mais fácil entender os outros ensinamentos do Buda. A compreensão e a prática dos ensinamentos do Buda levam infalivelmente à libertação da dor e do sofrimento. O Buda é o médico e tem o remédio, só precisamos tomá-lo. As Quatro Nobres Verdades do Buda constituem a cura para o sofrimento humano.

http://www.templozulai.org.br/as-quatro-nobres-verdades1376830707.html

sábado, 3 de janeiro de 2015

Siddhartha Gautama

Siddhartha Gautama nasceu há cerca de 2.500 anos para uma vida de privilégios. Shuddhodana, seu pai, era um homem rico e poderoso, e Mayadevi, sua mãe, era uma mulher refinada. Ao nascer, Asita, um vidente predisse que o menino estava destinado a um império político ou espiritual e, sem dúvida, os pais acharam o augúrio apropriado para o seu rebento. Talvez tenha sido por esta razão que escolheram o seu nome próprio: Sarvarthasiddha, “aquele que atingiu todos os objetivos”, ou Siddhartha, “aquele que realizou o seu objetivo”.



Sua mãe morreu pouco tempo depois do nascimento do filho, tendo sido criado por sua tia, Mahaprajapati. Embora preocupado com a educação apropriada a um jovem da sua posição, a sua juventude caracterizou-se por deleite e prazeres, uma vez que o seu pai desejava que o seu formoso filho tivesse o maior apego às vantagens da riqueza e do poder, a fim de vir a optar pela vida do império político. Ao atingir a idade de 16 anos foi-lhe atribuída por esposa, a jovem Yashodhara.

Contudo, os planos de seu pai não viriam a ser realizados, uma vez que foi por essa altura de sua vida que o jovem dera início a uma exploração física e intelectual do seu meio ambiente que viria a ter vastas consequências. Este período da sua história está expresso ou simbolizado pelo episódio das “quatro visões”, quatro experiências formativas que o jovem viveu quando viajava em sua carruagem.

Começou pelo aparecimento de um velho à beira da estrada, que fez com que, pela primeira vez, Siddhartha tivesse verdadeiramente compreendido o fato da inevitabilidade do envelhecimento, a que se seguiram confrontações equivalentes como a doença e a morte. Abalado por estas “visões” da condição humana, a complacência da sua vida de privilégio ficou perturbada e veio a reconhecer que tais condições dolorosas e humilhantes lhe estavam reservadas, assim como à sua bela esposa, tão seguramente como estavam reservadas a todas as outras criaturas.

A quarta visão, o encontro com um caminhante – um “parivrajaka” – plantou no seu espírito a semente que fez com que ponderasse sobre a situação durante os meses seguintes, vindo a crescer e a se tornar a convicção de que existia uma alternativa à aceitação passiva do sofrimento e da decadência, mas que esta procura exigiria uma ação não só radical como também dolorosa.

O acontecimento final que parece ter feito com que a balança da decisão pendesse para o lado da procura da liberdade de explorar a “Nobre Busca”, que o conduziria ao império espiritual profetizado por Asita, foi o nascimento de seu filho, que naquele momento significou o nascimento de um impedimento. A sua reação a este acontecimento tornar-se-ia decisiva. Sem a aprovação, nem mesmo o conhecimento de seus pais, partiu de casa deixando mulher e filho, família e status social, prazeres e privilégios. Com 29 anos de idade cortou os cabelos, vestiu-se com as roupas de mendigo e deu início à sua procura da verdade e da libertação.

O seu primeiro pensamento foi o de procurar um professor viajando para o Sul, em direção a Rajagrha, onde se encontrou com Bimbisara, o rei de Magadha – período este descrito de modo comovente no antigo poema, o Sutra Pabbajja do Sutra Nipata. Encontrou o seu primeiro professor, Alara Kalama, que lhe ensinou uma forma de meditação que levava a um estado exaltado de absorção, tecnicamente designado por “akimchanyayatana”, a esfera ou estado de não objetificação.

Contudo, tendo se igualado ao nível de seu mestre, Siddhartha reconheceu que um tal estado, carente de dimensão moral e cognitiva, não operava uma diferença radical na sua condição humana, continuando sujeito a envelhecimento, doença e morte: a sua busca não terminara ali. Apesar de Alara Kalama ter se oferecido para partilhar com ele a orientação dos próprios discípulos, Siddhartha partiu em busca de nova orientação.

Processo semelhante repetiu-se com o professor seguinte, Udraka Ramaputra, que o instruiu na realização de uma absorção meditativa designada por “naivasamjnanasamjnayatana”, o estado ou esfera da nem percepção nem não percepção, e que acabou por lhe oferecer também a condução exclusiva de seus discípulos.

De novo, não sendo isto o que Siddhartha procurava, dedicou-se depois à causa do ascetismo, na esperança de que isso o levasse à resolução da sua busca. Durante cinco ou seis anos viveu em Uruvilva, junto ao rio Nairanjana, na companhia de cinco outros ascetas, primeiro companheiros e depois seus discípulos. Levou a autotortura a extremos sem precedentes, retendo a respiração durante longos períodos, e mais tarde reduzindo a ingestão de alimentos. A história desta fase da sua procura é contada no Sutra Mahasaccaka.

Tendo posto a sua vida em perigo devido à obstinada opção ascética, Siddhartha de novo rejeita a sua realização, desta vez por ser perigosa e, em última instância, desnecessária. Voltou a alimentar-se moderadamente, pelo que foi rejeitado pelos seus discípulos ascetas, que por isso o abandonaram e se dirigiram para o Parque das Gazelas em Rshipatana, próximo da atual Benares.

Num espírito de profunda resolução, sentou-se debaixo de uma árvore na margem do Nairanjana, onde recordou uma natural e não deliberada experiência de dhyana, meditação absorta que lhe havia ocorrido na sua juventude quando estava sentado sob uma árvore jambo. Tomando esta opção como indicativa de uma atitude mais equilibrada e harmoniosa da sua procura, durante a noite, através da contemplação do mistério da morte e do renascimento, acabou por alcançar uma nova e profunda intuição da natureza da nossa condição, e do modo como as coisas são realmente. Esta foi a sua iluminação, o seu despertar para o modo como as coisas são realmente – yathabhuta –, razão pela qual é chamado de Buda, aquele que despertou. Tinha então 35 anos.

O resto de sua vida durou mais 45 anos e o levou num peregrinar constante através das regiões do Norte da Índia, até às cidades da bacia central do Ganges. Imediatamente após a sua Iluminação, passou várias semanas na vizinhança da Árvore Bodhi (um lugar que ficou conhecido pelo nome de Bodh Gaya), absorvendo e assimilando o impacto da sua transformadora intuição.

Teve algumas dúvidas acerca do valor da tentativa de comunicar isso a outros, mas foi Brahma, um alta divindade chamada Sahampati quem lhe suplicou que o fizesse para benefício daqueles que poderiam ser capazes de compreender a sua mensagem. Em primeiro lugar pensou nos seus antigos professores, Alara Kalama e Udraka Ramaputra, mas ao tomar conhecimento de que já tinham morrido, lembrou-se dos seus companheiros ascetas que o tinham abandonado com aversão. Aí ensinou no Parque das Gazelas, cerca de nove quilômetros a norte da cidade principal, e, por um processo lento, prolongado devido à inicial relutância deles em receber os seus ensinamentos, levou esses cinco antigos discípulos à mesma intuição que ele próprio tivera em Bodh Gaya.

Após esta realização penosamente alcançada, o seu ensinamento viu-se gratificado pela bem sucedida instrução de outros tantos 55 jovens. Exortou, então, este grupo inicial de 60 realizados a vaguearem, cada um por si próprio, pelas estradas e caminhos do país, ensinando esta mesma intuição do modo como as coisas são para benefício de muitos (bahujanahitaya).

O Buda continuou a ensinar por um período de 45 anos. A sua Sanga – a comunidade dos seus discípulos – cresceu rapidamente e, apesar de claramente apreciar os prazeres da solidão, os sutras sugerem que passou grande parte do seu tempo em centros urbanos tais como Rajagrha, Vaishali e Shravasti, onde teria a oportunidade de contatar com um maior número de pessoas.

Parece, de fato, que passou as estações das chuvas dos últimos 25 anos de sua vida em Shravasti, a capital de Koshala, uma grande e rica cidade no cruzamento de duas das maiores rotas de comércio, onde um importante discípulo laico chamado Anathapindika tinha doado um agradável parque ou bosque para uso do Buda e dos seus discípulos.

Com a idade de 80 anos, o Buda adoeceu gravemente em Vaishali, e decidiu que iria morrer ou entrar no seu parinirvana ao fim de três meses. A causa imediata da morte foi uma refeição de cogumelos venenosos, a que tudo indica, oferecida por um ferreiro chamado Chunda, e que lhe provocou uma disenteria. Faleceu no meio de um bosque de árvores em Kushinagara. As suas derradeiras palavras foram “vayadhamma samkhara, appamadena sampadetha”: todas as coisas compostas estão sujeitas a se degradarem, procurem manter a consciência em alerta. Sete dias depois, os seus restos mortais foram cremados e as relíquias desta cremação distribuídas pelos governantes locais para serem conservadas em dez, alguns dizem oito, stupas ou relicários.

Texto adaptado para o português do Brasil, extraído do livro Breve História do Budismo, Andrew Skilton, Editorial Presença, 1ª edição, Lisboa, julho, 2000.

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