sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A Poética do Espaço

Gaston Bachelard

"Logicamente, é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas, e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida, em nossos devaneios. Neste teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço."
(Gaston Bachelard)

Neste livro o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), procedendo a uma específica análise de espaços e lugares, cria uma reflexão singular a que chama "Poética do Espaço". O livro tem como campo de exame e investigação as imagens do “espaço feliz”, objetivando determinar o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados. Tendo a casa – e seus espaços – como foco, além da proteção, significado basilar, ligam-se também valores imaginados, fantasiados, figurativos e simbólicos. O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão apenas da arquitetura. Trata-se de uma reflexão poética sobre a percepção do espaço vivido em todas as parcialidades da imaginação. Trata-se, portanto, de estudar a Casa do Paraíso que todos nós construímos diariamente nos devaneios do nosso coração.

Assim, a imagem poética do espaço segue uma linha que começa com a poética da casa, enquanto instrumento de proteção para a alma humana, partindo para os valores da casa primitiva dos homens (cabanas), a casa das coisas (gavetas, armários e cofres), os ninhos e conchas, dos cantos e esconderijos, até chegar aos espaços da imensidão e da miniatura, do aberto e do fechado e, por fim, ao valor ontológico das imagens e da fenomenologia do redondo enquanto movimento.

O livro aborda a questão da poética da casa, analisada nos horizontes teóricos mais diversos, onde a imagem da casa se torna a topografia do nosso ser íntimo. Há um sentido em considerar a casa como um instrumento de análise e reconhecimento da alma humana, dos seus sonhos concretos e seus desejos imaginários. Não somente as nossas lembranças como, também, nossos esquecimentos estão alojados na memória dos espaços onde crescemos, nos criamos e habitamos. Neste sentido, o conceito de habitar transcende o alojamento do nosso corpo físico e se derrama sobre os lugares onde habitam os devaneios do nosso inconsciente. Nosso inconsciente está alojado. Nossa alma é uma morada. E, lembrando-nos das casas, dos aposentos, aprendemos a morar em nós mesmos. Neste sentido, as imagens da casa se mostram como uma via de mão dupla: elas estão em nós tanto quanto estamos nelas. Não raro, reconhecemos que muito antes da casa estar concretamente construída no terreno, ela já abriga, enquanto projeção dos nossos desejos e necessidades, os sonhos mais reais de uma possível vida feliz. A casa, enquanto lar, deve ser construída no coração, muito antes de ser construída em algum terreno. Assim sendo, muitas vezes vivemos mais felizes na casa imaginária dos sonhos, do que na casa que concretamente nos abriga da chuva, do sol, do vento e do frio.

Na sequência, o livro discorre sobre uma série de imagens que podemos considerar como a casa das coisas: as gavetas, os cofres e os armários. Esses móveis trazem em si uma espécie de estética do oculto onde o espaço físico das gavetas – com seus objetos guardados ou imaginados – é facilmente associado, como metáfora, aos espaços ocultos da nossa alma com nossos cheios e vazios. Os devaneios da intimidade, representados pelos armários e suas prateleiras, as escrivaninhas e suas gavetas, os cofres e os fundos falsos sem restringir a memória a um armário de lembranças. O cofre e a fechadura, por outro lado, estão sob o signo do segredo, da alma fechada do ser fechado, está muito mais ligado ao signo do esconderijo e do mistério. Explicitam, por vezes, nossa necessidade de ter controle sobre as vivências e emoções, boas ou ruins, dando a cada uma deles um lugar organizado e indexado dentro das nossas memórias para que, a qualquer momento, possamos revisitá-las, reordená-las, com a segurança de que sabemos exatamente onde cada uma delas está.

De forma menos concreta e mais simbólica, surgem capítulos dedicados aos ninhos e às conchas – refúgios do vertebrado e do invertebrado – que dão testemunho de uma atividade imaginadora mal refreada pela realidade dos objetos. Nós, que por tanto tempo meditamos sobre a imaginação dos elementos, revivemos mil devaneios aéreos ou aquáticos ao acompanharmos os poetas até o ninho no alto das copas das árvores ou até essa natural caverna animal que é a concha, nas profundezas dos oceanos que definimos para cada um de nós. O ninho é um objeto externo que necessitamos construir. Nos exige a ação criadora e a iniciativa do querer fazer. Do juntar as partes e dar a forma que queremos. A concha é uma casa orgânica que cresce e se constrói na mesma medida que seu morador.

Não raro, encontramos nas próprias casas redutos e cantos onde gostamos de nos acomodar e nos encolher. Só habita com intensidade aquele que soube se encolher nos cantos da sua casa ou da sua alma. Estes nichos e cantos são os lugares recônditos onde guardamos nossos maiores segredos e desejos secretos. Onde guardamos nossas coisas mal - ou não - resolvidas, nossos projetos e desafios futuros, principalmente, àqueles que sabemos serem os mais difíceis e perturbadores. Os nichos e cantos, ao contrário das gavetas e prateleiras, são os espaços onde a poesia evoca e acomoda tudo aquilo que ainda não está realizado, resolvido ou arrumado. Temos em nós, a este respeito, todo um estoque de imagens e percepções sobre os cantos da nossa alma e as memórias de nossa vivência, onde cada canto é estruturado e dimensionado para abrigar cada uma das nossas emoções e sentimentos abandonados ou adormecidos. Nossa alma é nosso canto, nossa primeira casa.

Depois de discorrer sobre os espaços da intimidade, o livro foca na poética do espaço sob a ótica da dialética do grande e do pequeno, signos da Miniatura e da Imensidão. Em ambos os casos, o pequeno e o grande não devem ser entendidos em sua objetividade dimensional. O livro apenas os trata como dois polos de uma mesma projeção de imagens, onde a percepção e a definição de escala está em nós, no valor que damos aos fatos da nossa vida e não, necessariamente, ligada ao tamanho dos espaços, objetos ou desafios. Aquilo que para uns é um desafio imenso, para outros não passa de uma suave experiência do cotidiano. Tudo depende da perspectiva pela qual olhamos para o desafio. Depende dos anticorpos desenvolvidos, por um ou por outro, ao longo das várias experiências de vida. Depende da capacidade lúdica de cada um de suportar a dor e dobrar os medos. Neste sentido, o julgamento das ações do outro torna-se o pior conselheiro. A coragem não pode ser mensurada, não reside na velocidade das ações, mas na decisão do foco.

A partir deste ponto do livro torna-se imperioso discutir a dialética do interno e do externo, dialética que repercute na percepção do aberto e do fechado. Das relações entre o interior e o exterior, tanto dos espaços físicos, quanto da alma. De tudo aquilo que eu abro e, principalmente, para quem eu abro. Ou da necessidade defensiva de se fechar. Da ideia imaginária de um fechamento que é muito mais a ausência do descortinamento pleno do que a necessidade de controlar as relações entre as noções de estar dentro ou fora, de entrar e sair. No caso do exterior e do interior verificamos uma constante dialética, pois, diante da liberdade da poesia, ora o exterior representa a prisão ora o interior é a imensidão. A simples imagem da porta conduz tantos devaneios, instaura tantos desejos de vê-la aberta, de abrir o ser, de conquistar estes dois planos: o fechado e o aberto e o seu intermediário – o entreaberto. A metáfora que faz parte do senso comum de que quando uma porta de fecha outra se abre é imaginária justamente por não ser absoluta e sincronizada.

No capítulo final, o livro aborda a fenomenologia do redondo, que nos conduz à percepção poética do movimento constante da vida, "basta dar um passo e já não estamos no mesmo lugar", afastando-se diametralmente de toda a evidência e obviedade geométrica. A afirmação de que “provavelmente a vida é redonda”, pronunciada por Van Gogh, ou que “todo o ser parece em si redondo”, na fala de Jaspers, desperta uma indagação acerca da imagem poética do redondo como movimento das coisas, como conforto da linha curva e, principalmente, como fluxo contínuo não linear.

Como poderemos concluir ao longo da leitura do livro, a casa é um dos maiores poderes que permitem interligar os pensamentos, lembranças, desejos, aspirações e os sonhos do homem e os seus devaneios. A casa é vista, segundo Bachelard, como o grande berço, o aconchego e a proteção, a principal referência de ser e estar, desde o nascimento do homem. É o paraíso material, mas é, também, o paraíso espiritual. As lembranças da casa estão guardadas na memória, no inconsciente e acompanha-nos durante toda a vida e, sempre voltamo-nos a elas nos nossos pensamentos e devaneios.



A poética do Espaço
Gaston Bachelard
Martins Fontes
São Paulo
1988

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente interpretação desta obra tão relevante para os estudos literários; dado o caráter filosófico com que o autor conduz as reflexões, acaba que a princípio nos vemos diante de uma discussão densa, mas o modo poético como as exposições são feitas, acaba que somos envolvidos no universo da discussão, deixando-nos levar pelas ressonâncias das imagens do texto, como diz o próprio Bachelard.