sábado, 6 de setembro de 2008

Construção

Neste mês de agosto que passou, comemorei 30 anos desde a primeira vez em que vesti um capacete de obra e um bom par de botas de biqueira de aço e, amarrado por alguns cintos de segurança, subi pelo elevador externo (que mais parecia um andaime móvel) a grande parede lateral do, ainda em obras, edifício da Caixa Econômica Federal, na Rua da Praia, ao lado da Praça da Alfândega.

Eu tinha 14 anos e este foi meu primeiro emprego de carteira assinada. Desenhista da divisão de ar condicionado (DAC) da extinta empresa gaúcha Bojunga-Dias S.A. Está lá escrito na minha carteira do trabalho. Meu trabalho era super legal. Eu tinha que fazer levantamentos nas obras e atualizar constantemente os desenhos de execução. Vários desenhos!! Infinitos desenhos, das mais variadas coisas, nas mais variadas escalas. Lembro da quantidade absurda de pranchas que um projeto desta envergadura necessitava para ser executado.

Minha mesa de desenho, postada na parede curva entre a Av. Farrapos e a Rua Dr. Barros Cassal, era super grande (1,60 x 1,20m) para os padrões atuais. Nela eu tinha um tecnígrafo (uma espécie de braço mecânico com duas réguas ortogonais que se movimentava para todos os cantos da mesa). Era uma curtição desenhar com aquilo. Nesta época os desenhos eram feitos artesanalmente em papel vegetal e nanquim. Quando alguma coisa dava errada, e tinha que ser alterada, pegávamos uma lâmina de barbear do tipo Gilette e raspávamos muito delicadamente a superfície do papel até retirar totalmente os traços de tinta do desenho antigo. Então, pegávamos uma borrachinha áspera (chamada de borracha de areia) e passávamos sobre a superfície raspada para devolver ao papel a textura adequada para fazermos um novo desenho.

Passava os dias fazendo isto!! Da empresa para os vários canteiros de obras para a empresa. Quanto mais fazia isto, mais trabalho tinha para ser feito. Um layout de forro que mudava, uma casa de máquinas que aumentava, um duto que trocava de lugar, uma central térmica que recebia um novo equipamento. E lá ia eu. Trena e prancheta na mão, fazendo vários croquis e desenhos de levantamento para, então, retornar ao escritório e atualizar tudinho, tirar cópias heliográficas e mandar novamente os desenhos para o canteiro de obras.

Vi e participei de vários grandes projetos. Caixa Econômica Federal da Praça da Alfândega, Caixa Econômica Estadual da Av. Borges de Medeiros, Casa da Alemanha (Instituto Goethe), Fundação Zoobotânica, reforma do Teatro São Pedro, Hotel Continental, Shopping Center Iguatemi, entre outros tantos. Deste último projeto tenho muitas boas lembranças. Nesta época eu já era projetista sênior e coordenava equipes de construção. E foi na obra do Shopping Center Iguatemi que finalizei minha participação nesta empresa. Lembro como se fosse hoje da semana que antecedeu a inauguração do shopping (SCIPA). Olhava para os lados e não conseguia acreditar que aquela obra seria inaugurada dali alguns dias, diante de tanta coisa por fazer e de tanta aparente desordem. Na reta final, fiquei residente na obra por quatro longos meses. E não tinha horário!! Manhã, tarde, noite e longas madrugadas. Não raras as vezes em que, diante de tantas tarefas inacabadas, virava as noites e dias pernoitando no próprio barracão de obras (nome dado às construções temporárias das empresas construtoras e instaladoras que ficavam naquele barranco lateral, paraleo ao shopping, onde hoje existem um plantão de vendas de um grande empreendimento local e uma concessionária de veículos). Era uma verdadeira cidade temporária.

Um dia destes vou escrever sobre a saga de ser arquiteto e engenheiro naquele tempo. Mas era muito divertido. E lembro, também, que a remuneração era muito boa. Com as horas extras, então, ficava uma maravilha!!! A sede da empresa era na Av. Farrapos, 146 e o DAC ocupava todo o terceiro pavimento. Lembro ainda de cabeça o telefone da empresa 25.1044 (naquela época os telefones tinham somente 6 dígitos). Neste edifício, nos quatro primeiros pavimentos, funcionou por muito tempo esta empresa com seus departamentos e escritórios. Foi de uma destas janelas que vi, pela primira vez, um Papa (o Papa João Paulo II esteve em Porto Alegre em 1980 e passou em cortejo pela Av. Farrapos). Os galpões de obra, estoque, manutenção, depósitos, almoxarifados, entre outros, ficavam na Av. Voluntários da Pátria, logo dobrando a direita na Rua Dr. Barros Cassal. Ali fazíamos os famosos churrascos de departamento para comemorar o saldo financeiro posito, ao final de cada mês.

Fiquei na Bojunga-Dias S.A. ao longo de cinco anos, até meados de 1983, quando então fui convidado para trabalhar noutro lugar. Até hoje, passados todos estes anos, mantenho contato com pessoas daquela época. Muitos se tornaram amigos inseparáveis, outros, mesmo não estando próximos, continuam no meu coração. Sem dúvidas vem desta época a paixão que tenho pela construção. O cheiro do primeiro cimento virado na obra pela manhã, das paredes ainda molhadas pelos rebocos sendo alisados, do vento circulando pelos corredores das edificações ainda sem janelas, do cheirinho do café feito em pequenos fogareiros nos intervalos. É bem provável que seja por esta razão que me alinho entre aqueles que acreditam que a verdadeira arquitetura é aquela manifesta, não somente no discurso dos desenhos, mas, principalmente, pela obra pronta.

Muita coisa que sei sobre construção vem desta época. Da prática diária no trato com os operários. Mas acima de tudo, vem desta época, também, o sentido e o reconhecimento da importância da parceiria, do companheirismo, do valor das ações colaborativas, do gosto e do aprendizado pelo trabalho em equipe, da amizade em todos os níveis e, sem dúvidas, do aprendizado maior do respeito e da cordialidade para com as pessoas. Qualquer pessoa. Então, não posso deixar de fazer alguns comparativos daqueles tempos idos, com os dias atuais, onde tanta coisa de base moral e ética encontra-se sucateada e perdida no exercício autoritário do poder e no desespero pela manutenção do trabalho. Gente descartando gente. Gente escalando gente. Gente desprezando gente. Gente não respeitando gente. Gente sacaneando gente. Sem a mínima coragem de olhar nos olhos para revelar as coisas como de fato são.

Então, esta letra de música, que acabei de ouvir no rádio, é para os meus amigos de fé e irmãos camaradas que, no dia-a-dia da nossa profissão, vivem moral e eticamente entre as salas de aulas, a prancheta e os canteiros de obras e, por esta razão, acreditam ainda naquela velha e boa arquitetura feita também de construção!! Principalmente nos dias de hoje, onde parece que nosso ofício faz-se mais de palavras e metáforas do que tijolos...

Mente aberta e espinha ereta, não fazem mal para ninguém!!

Força e honra!!
(Saudação Romana)

Construção
Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá dindo!
Não sabia que havia começado tão novinho a trabalhar em obras. Ainda era um piá quando se encantou pela arquitetura. Que legal!
Adorei conhecer um pouco da tua história e estou curiosa pra saber mais!
Beijo!