terça-feira, 19 de agosto de 2008

Os Estatutos do Homem

Não faz muito, revirando algumas caixas e pastas do arquivo morto aqui do escritório, achei perdido entre alguns papéis do passado este texto escrito pelo Thiago de Mello em 1964 e que durante muito tempo esteve fixado estratégicamente na parede do meu antigo escritório do Bom Fim, ao lado da minha mesa de desenho, para eu, inevitavelmente, poder ver.

Lembro de ler, quase que diariamente, este manifesto - na forma de estatuto - enquanto preparava o primeiro chimarrão da manhã. Meu escritório, na Osvaldo Aranha 790, era de fundos e, portanto, a vista não era das melhores. Lembro de ver as portas e janelas dos fundos envelhecidos e mal pintados de várias edificações residenciais que dividiam comigo a intimidade de um único grande poço de pouca luz e nenhuma ventilação. Então, enquanto cevava o mate, antes do início das atividades de trabalho, dividia minha atenção entre as várias e coloridas roupas no varal, os sons mais inimagináveis e as belas palavras deste texto inspirador.

Isto aconteceu diariamente ao longo de quase 10 anos. Quando saí de lá, no final do longo ano de 1997 juntei tudo aquilo que me interessava. Móveis, canudos, velhos quadros da parede, algumas fotos, muitos livros. E lembro de ter tirado da parede, grudado por camadas de fitas adesivas envelhecidas, este papel, rasgadinho em alguns cantos e já amarelado pela ação do tempo, para guardar numa pasta de coisas muito importantes, que somente agora, passados quase 11 anos, eu achei e abri.

Interessante esta avaliação que fazemos, de tempos em tempos, das coisas que são importantes para nós... Achei papéis, nesta pequena pastinha de plástico transparente e quebradiço, que eu não tenho a mínima idéia das razões que me levaram a guardá-los. Anotações vagas e pouco compreenssíveis, documentos, fotos de lugares e paisagens da cidade que nem existem mais, ecoando como velhos contratos perdidos no tempo.

Noto, em algumas fotos que tirávamos na alegria do dia-a-dia, que meu cabelo era mais preto. Mas a alegria dos rostos perpetua aquele sentimento bom dos divertidos tempos daquela época. É engraçado como se propagam os sentimentos verdadeiros. Mesmo com a distância e com a ação do tempo, eles não morrem. Não que vivam das lembranças ou dos fatos do passado. O passado é somente uma referência temporal. Se ainda sentimos uns aos outros, então, ainda estamos no presente. Mesmo quando a vida segue seu rumo.

Acabo de grudar este texto novamente na parede em frente ao meu computador. Olho em volta e percebo que apenas uma pequena mesa de desenho, com sua fiel e inseparável régua paralela, sobreviveu aos apelos da tecnologia digital e permanece viva, dignamente no espaço desta sala. Talvez como uma referência ou como um símbolo de transição. A vista da janela é ótima com muita luz e ventilação saudável. Do oitavo andar, sem barreiras e com uma vista permanente, enxergo longe. A paisagem vista da janela mudou bastante ao longo destes anos. Aqui ao lado tem um grande condomínio residencial. Vi as fundações do primeiro edifício sendo concretadas. Depois a primeira laje. Depois as demais. Depois os outros 10 edifícios. Vi as pessoas chegando alegres com seus vários caminhões de mudança para o início de novas vidas. Muitas novas, altas e estranhas edificações residenciais surgiram no horizonte, nem tão distante. Permanece desocupado, sabe-se lá por quanto tempo, esta grande área livre do terreno que antigamente abrigava o complexo industrial Wallig Fogões. Vejo, preocupado, um posteamento sendo erguido dentro dele. De tempos em tempos, um circo ali se instala trazendo cores, sons, pessoas e muita alegria para aquele lugar.

Vou fazer um chimarrão agora.

Incrível como alguns textos, ficam cada vez mais atuais com a passagem do tempo e com a crise ética da sociedade e do mundo em que vivemos. Hoje não tem sol. Pelo rádio, ouço o time de futebol feminino do Brasil tentando buscar sua merecida medalha de ouro nas olimpíadas de Pequim. Muitas nuvens escuras anunciam uma forte chuva por vir. O inverno está indo embora. As laranjeiras já estão floridas e o ar fica temperado por este aroma de primavera. Contagem regressiva para o verão!! O ciclo mágico da vida segue seu curso!!

Deixo-lhes, então, na companhia do texto...

Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)

Thiago de Mello

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964


Thiago de Mello é o nome literário de Amadeu Thiago de Mello, nascido a 30 de março de 1926, na cidade de Barreirinha, localizada à margem direita do Paraná do Ramos, braço mais comprido do Rio Amazonas, na Amazônia.

5 comentários:

disse...

A velha história do copo meio cheio ou meio vazio, não adianta subir em uma árvore, deitar-se no chão, virar de cabeça pra baixo se o seu jeito de olhar o mundo continuar o mesmo, ninguém poderia ler uma poesia se não estivesse disposto a completá-la, a dividir com a sua própria existência, sua realidade, sua vida...,mas que cada um seja livre para fazer de sua vida um poema, um romance ou simplesmente um conto de fadas.


bjão

Paulo Ricardo Bregatto disse...

Pois é... De qualquer forma, considerando os tempos estranhos e bicudos que estamos vivendo, onde muitos princípios da ética e da moral estão completamente esquecidos ou comodamente deixados de lado, onde vemos gente escalando gente, gente não respeitando gente, gente descartando gente, me pareceu importantente resgatar este velho e atual manifesto!!
Super beijo!!

Arq. Juliana Litwinski disse...

Olá professor, e agora colega...
Obrigada pela visitinha no meu blog!
Muito legal receber o incentivo dos nossos mestres!
Bjão
Ju Litwinski

disse...

Oi Bregatto!!!


Tô passando pra reclamar...hehehehe!!!Onde estão as notícias,novidades de setembro; da "revista eletrônica mensal"!!!??Poderia né??!!
Bjão

Leila Marinho Lage disse...

Mais ou menos na época em que você publicou o texto de Thiago, eu fiz o mesmo com uma apresentação em Power point, que anda por aí, mas que eu hoje decidi melhorar e vou fazer um áudio e um vídeo em breve.
Daí procurei nas páginas de pesquisa o texto original dele, pois até o próprio autor, ao declamar esta obra maravilhosa, muda a ordem das frases e modifica as palavras (ao que ele tem direito). Acabei em seu blog e pousei aqui em 2008, apesar de estarmos em 2014.
O que me impressiona é que o que resumiu neste seu "devaneio" do passado é EXATAMENTE o que eu publiquei na época, que está em meu sirte e também noutro site, o do Recanto das Letras.
Devemos ter a mesma faixa etária e provavelmente, na infância ou adolescência, compramos o mesmo cartaz, o qual ficou por muitos anos à minha frente, tal como contigo - e que apodreceu de tão velho (mas dei um monte deles de presente para meus coleguinhas.
São palavras conhecidas mundialmente, e, como Thiago diz, o poema não é mais dele: é do mundo. Entretanto, infelizmente, os jovens da sociedade brasileira de agora não estão curtindo este barato, mas farei o possível pra transformar o "velho" em linguagem bem mais interessante e bela.
É preciso entrarmos na dos jovens para que entendam que fomos igualzinhos a eles. Só havia uma diferença: nos dias atuais enquanto a CULTURA é lançada em Youtube e em outras páginas, nós curtíamos posters, guardávamos recortes de jornais ou revistas, líamos livros compulsivamente e gravávamos os sons de nossa história nas fitas K7.