sexta-feira, 11 de julho de 2014

A chegada do barco

Não imaginava que reeditar estes textos, do livro O Profeta de Khalil Gibran, fossem causar tanta repercussão entre os leitores deste blog. Tenho recebido muitas manifestações por email enfatizando a atualidade e lucidez deste pequeno livro, breves relatos sobre as metáforas contidas nos textos e as comparações com experiências reais de vida, bem como, solicitações de maiores informações e explicações sobre a origem dos textos. Não conheço, tanto do livro, quanto do autor, muito mais do que tenho publicado aqui. Como falei numa postagem anterior, este livro foi presente de uma amiga querida quando, naquela época, fiz para ela o projeto de uma casa, e voltei a encontrá-lo, supostamente perdido entre caixas de livros abertas com o advento da minha mudança de escritório.

A curiosidade explicitada nos e-mails que tenho recebido tem despertado em mim, também, a curiosidade de reler estes textos, todos relacionados ao cotidiano das pessoas que habitaram a cidade de Orfalese e que, quando da sua partida para sua terra natal pediram que discorresse sobre os fatos da vida real presenciados por ele naquele exílio.

O mais legal das fábulas e metáforas do livro é a facilidade com que podemos associar o conteúdo dos textos às coisas e fatos do nosso dia a dia. Talvez, por esta razão, tenho recebido tantas manifestações carinhosas e emocionantes sobre estas postagens. Para melhor entendimento dos textos publico agora na sequência o texto introdutório do livro que ajuda a contextualizar a obra.

Mustafá, o eleito e o amado, no crepúsculo de seus dias, havia esperado doze anos, na cidade de Orfalese, por seu barco, que deveria voltar e levá-lo de volta à ilha onde nascera. E no décimo segundo ano, ao sétimo dia do Ielool, o mês da colheita, subiu a colina, longe dos muros da cidade, e olhou para o mar; viu o seu barco chegando com a neblina. Então, os portões do seu coração abriram-se e sua alegria voou até o mar. Ele fechou os olhos e rezou no silêncio de sua alma.

Mas quando descia a colina, foi tomado de tristeza, e pensou com seu coração: Como partirei em paz e sem sofrimento? Não, não deixarei esta cidade sem uma ferida na alma. Longos foram os dias de dor que passei dentre seus muros, e longas foram as noites de solidão; e quem pode abandonar esta dor e esta solidão sem arrependimento?

São demasiados os fragmentos do espírito que espalhei por estas ruas e demasiadas são as crianças de meu afeto que caminham nuas por estas colinas, e não posso abandoná-los sem culpa e sem dor. Não é uma peça de roupa que jogo fora hoje, mas uma pele que rasgo com minhas próprias mãos. Também não é um pensamento que deixo para trás, mas um coração adocicado pela fome e pela sede.

Porém, não posso me demorar mais.

O mar, que chama todas as coisas, me chama e devo embarcar. Pois ficar, apesar das horas que queimam na noite, é congelar e cristalizar e ficar preso a um molde. De bom grado, levaria comigo tudo o que existe aqui. Mas como poderia? Uma voz não pode levar a língua e os lábios que lhe deram asas. Deve buscar o éter sozinha. E sozinha e sem o seu ninho deve a águia voar através do sol.

Ao chegar ao sopé da colina, voltou-se mais uma vez para o mar e viu seu barco aproximar-se do cais e, na proa, os marinheiros, os homens de sua própria terra. Sua alma gritou para eles, e ele disse: Filhos de minha mãe ancestral, cavaleiros das marés, vocês navegaram tanto por meus sonhos e agora chegam em meu despertar, que é meu sonho mais profundo. Estou pronto para partir, e minha ansiedade, de velas abertas espera o vento. Apenas mais um momento respirarei este ar parado, apenas mais um outro olhar amoroso lançado para trás, e então estarei entre vocês, um homem do mar entre homens do mar. E tu, amplo mar, mãe adormecida, que, por si só, és paz e liberdade para o rio e para o riacho, apenas outra curva este riacho fará, apenas outro murmúrio nesta senda, e então virei a ti, uma infinita gota para um infinito oceano.

E, enquanto andava, viu de longe homens e mulheres deixando seus campos e seus vinhedos, correndo para os portões da cidade. E ouviu suas vozes chamando seu nome, e gritando de campo a campo, contando uns aos outros da chegada do seu barco.

E ele disse para si mesmo: Será o dia da partida o dia do encontro? E será dito que meu crepúsculo era na verdade a minha aurora? E o que darei àquele que deixou seu arado no meio do trabalho, ou àquele que parou a roda da prensa de vinho? Meu coração se tornará uma árvore carregada de frutas para que eu possa colhê-las e dá-las a eles? E meus desejos fluirão como uma fonte para que eu possa encher seus cálices? Serei uma harpa para que a mão do poderoso possa me tocar, ou uma flauta para que seu hálito possa passar através de mim? Sou um explorador de silêncios, e que tesouros encontrei nos silêncios que eu possa contar com confiança? Se este é meu dia de colheita, em que campos semeei a semente e em quais memoráveis?

Se esta é realmente é a hora de levantar minha lanterna, não será a minha chama que vai queimar dentro dela. Levantarei minha lanterna vazia e na escuridão. E o guardião da noite a encherá de óleo e a acenderá. Ele expressou isso com palavras. Mas muitas permaneceram em seu coração. Porque ele não podia falar de seu mais profundo segredo. E quando entrou na cidade, todos vieram encontrá-lo, e gritavam para ele a uma só voz.

E os anciãos da cidade deram um passo à frente e disseram: Não nos abandona, Tu foste o meio dia em nossos crepúsculos, e tua juventude nos deu sonhos para sonhar. Tu não és um estranho entre nós, nem um hóspede, mas nosso filho e nosso amado. Que nossos olhos ainda não sofram de fome por teu rosto.

E os sacerdotes e sacerdotisas disseram a ele: Que as ondas do mar não nos separem agora, e que os anos que passaste em nosso meio não se tornem memória. Tu caminhaste entre nós como um espírito, e tua sombra tem disso uma luz para nossos rostos. Nós te amamos muito. Mas nosso amor era mudo, e com véus ele foi velado. Mas agora ele grita para ti, e será revelado frente a ti.

E sempre foi assim, o amor não conhece a sua própria profundidade até a hora da separação.

E os outros vieram e suplicaram. Mas ele não respondeu. Apenas baixou a cabeça; e aquelas que estavam próximos viram as lágrimas caindo sobre seu peito. E ele e o povo foram para a grande praça em frente ao templo. E lá saiu do santuário uma mulher chamada Altamira. E ela era uma profetisa. E ele a olhou com extremo carinho, pois foi ela quem primeiro o procurou e acreditou nele quando havia chegado na cidade há apenas um dia.

E ela o saudou dizendo: Profeta de Deus, em busca do supremo, há muito buscas teu barco a distância. E agora que teu barco chegou, deves partir. Profunda é a tua saudade da terra de tuas memórias e da residência dos teus maiores desejos; e nosso amor não vai te prender nem nossas necessidades vão te prender. Porém, pedimos que antes que nos deixes, que fales para nós e nos contes a tua verdade. E nós a contaremos a nossos filhos, e ela não perecerá. E tua solidão, observaste nossos dias; em tua percepção, escutaste o choro e o riso de nosso sono. Agora, portanto, conta-nos tudo o que te foi mostrado do que existe entre o nascimento e a morte.

E ele respondeu: Povo de Orfalese, o que eu posso falar exceto do que ainda está se movendo dentro de vossas almas?



O Profeta
Khalil Gibran
L&PM Pocket 222
Primeira edição
Páginas 13-21
Abril de 2001

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