A curiosidade explicitada nos e-mails que tenho recebido tem despertado em mim, também, a curiosidade de reler estes textos, todos relacionados ao cotidiano das pessoas que habitaram a cidade de Orfalese e que, quando da sua partida para sua terra natal pediram que discorresse sobre os fatos da vida real presenciados por ele naquele exílio.
O mais legal das fábulas e metáforas do livro é a facilidade com que podemos associar o conteúdo dos textos às coisas e fatos do nosso dia a dia. Talvez, por esta razão, tenho recebido tantas manifestações carinhosas e emocionantes sobre estas postagens. Para melhor entendimento dos textos publico agora na sequência o texto introdutório do livro que ajuda a contextualizar a obra.
Mustafá, o eleito e o amado, no crepúsculo de seus dias, havia esperado doze anos, na cidade de Orfalese, por seu barco, que deveria voltar e levá-lo de volta à ilha onde nascera. E no décimo segundo ano, ao sétimo dia do Ielool, o mês da colheita, subiu a colina, longe dos muros da cidade, e olhou para o mar; viu o seu barco chegando com a neblina. Então, os portões do seu coração abriram-se e sua alegria voou até o mar. Ele fechou os olhos e rezou no silêncio de sua alma.
Mas quando descia a colina, foi tomado de tristeza, e pensou com seu coração: Como partirei em paz e sem sofrimento? Não, não deixarei esta cidade sem uma ferida na alma. Longos foram os dias de dor que passei dentre seus muros, e longas foram as noites de solidão; e quem pode abandonar esta dor e esta solidão sem arrependimento?
São demasiados os fragmentos do espírito que espalhei por estas ruas e demasiadas são as crianças de meu afeto que caminham nuas por estas colinas, e não posso abandoná-los sem culpa e sem dor. Não é uma peça de roupa que jogo fora hoje, mas uma pele que rasgo com minhas próprias mãos. Também não é um pensamento que deixo para trás, mas um coração adocicado pela fome e pela sede.
Porém, não posso me demorar mais.
O mar, que chama todas as coisas, me chama e devo embarcar. Pois ficar, apesar das horas que queimam na noite, é congelar e cristalizar e ficar preso a um molde. De bom grado, levaria comigo tudo o que existe aqui. Mas como poderia? Uma voz não pode levar a língua e os lábios que lhe deram asas. Deve buscar o éter sozinha. E sozinha e sem o seu ninho deve a águia voar através do sol.
Ao chegar ao sopé da colina, voltou-se mais uma vez para o mar e viu seu barco aproximar-se do cais e, na proa, os marinheiros, os homens de sua própria terra. Sua alma gritou para eles, e ele disse: Filhos de minha mãe ancestral, cavaleiros das marés, vocês navegaram tanto por meus sonhos e agora chegam em meu despertar, que é meu sonho mais profundo. Estou pronto para partir, e minha ansiedade, de velas abertas espera o vento. Apenas mais um momento respirarei este ar parado, apenas mais um outro olhar amoroso lançado para trás, e então estarei entre vocês, um homem do mar entre homens do mar. E tu, amplo mar, mãe adormecida, que, por si só, és paz e liberdade para o rio e para o riacho, apenas outra curva este riacho fará, apenas outro murmúrio nesta senda, e então virei a ti, uma infinita gota para um infinito oceano.
E, enquanto andava, viu de longe homens e mulheres deixando seus campos e seus vinhedos, correndo para os portões da cidade. E ouviu suas vozes chamando seu nome, e gritando de campo a campo, contando uns aos outros da chegada do seu barco.
E ele disse para si mesmo: Será o dia da partida o dia do encontro? E será dito que meu crepúsculo era na verdade a minha aurora? E o que darei àquele que deixou seu arado no meio do trabalho, ou àquele que parou a roda da prensa de vinho? Meu coração se tornará uma árvore carregada de frutas para que eu possa colhê-las e dá-las a eles? E meus desejos fluirão como uma fonte para que eu possa encher seus cálices? Serei uma harpa para que a mão do poderoso possa me tocar, ou uma flauta para que seu hálito possa passar através de mim? Sou um explorador de silêncios, e que tesouros encontrei nos silêncios que eu possa contar com confiança? Se este é meu dia de colheita, em que campos semeei a semente e em quais memoráveis?
Se esta é realmente é a hora de levantar minha lanterna, não será a minha chama que vai queimar dentro dela. Levantarei minha lanterna vazia e na escuridão. E o guardião da noite a encherá de óleo e a acenderá. Ele expressou isso com palavras. Mas muitas permaneceram em seu coração. Porque ele não podia falar de seu mais profundo segredo. E quando entrou na cidade, todos vieram encontrá-lo, e gritavam para ele a uma só voz.
E os anciãos da cidade deram um passo à frente e disseram: Não nos abandona, Tu foste o meio dia em nossos crepúsculos, e tua juventude nos deu sonhos para sonhar. Tu não és um estranho entre nós, nem um hóspede, mas nosso filho e nosso amado. Que nossos olhos ainda não sofram de fome por teu rosto.
E os sacerdotes e sacerdotisas disseram a ele: Que as ondas do mar não nos separem agora, e que os anos que passaste em nosso meio não se tornem memória. Tu caminhaste entre nós como um espírito, e tua sombra tem disso uma luz para nossos rostos. Nós te amamos muito. Mas nosso amor era mudo, e com véus ele foi velado. Mas agora ele grita para ti, e será revelado frente a ti.
E sempre foi assim, o amor não conhece a sua própria profundidade até a hora da separação.
E os outros vieram e suplicaram. Mas ele não respondeu. Apenas baixou a cabeça; e aquelas que estavam próximos viram as lágrimas caindo sobre seu peito. E ele e o povo foram para a grande praça em frente ao templo. E lá saiu do santuário uma mulher chamada Altamira. E ela era uma profetisa. E ele a olhou com extremo carinho, pois foi ela quem primeiro o procurou e acreditou nele quando havia chegado na cidade há apenas um dia.
E ela o saudou dizendo: Profeta de Deus, em busca do supremo, há muito buscas teu barco a distância. E agora que teu barco chegou, deves partir. Profunda é a tua saudade da terra de tuas memórias e da residência dos teus maiores desejos; e nosso amor não vai te prender nem nossas necessidades vão te prender. Porém, pedimos que antes que nos deixes, que fales para nós e nos contes a tua verdade. E nós a contaremos a nossos filhos, e ela não perecerá. E tua solidão, observaste nossos dias; em tua percepção, escutaste o choro e o riso de nosso sono. Agora, portanto, conta-nos tudo o que te foi mostrado do que existe entre o nascimento e a morte.
E ele respondeu: Povo de Orfalese, o que eu posso falar exceto do que ainda está se movendo dentro de vossas almas?

O Profeta
Khalil Gibran
L&PM Pocket 222
Primeira edição
Páginas 13-21
Abril de 2001
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