sexta-feira, 10 de abril de 2009

O homem e a natureza

Seyyed Hossein Nasr

Nasr é uma autoridade reconhecida em estudos relativos ao Islã, seja na doutrina esotérica ou na religiosa, seja na arte, na história ou nos costumes do povo islâmico. É decisivo, além disso, o fato de conhecer muito bem a fisionomia mental dos orientais e dos ocidentais modernos e estabelecer pontes e laços que permitam a mútua compreensão. Seu livro 'O Homem e a Natureza' é ainda nos dias atuais um lastro fundamental para a compreensão das raízes profundas que determinaram o mundo contemporâneo.

Este pequeno e precioso volume foi publicado pela primeira vez em 1968. Em 1977 foi traduzido e editado no Brasil pela Zahar Editores e desde a década de 80 esta edição encontra-se esgotada, sendo alvo apenas dos curiosos e persistentes reviradores de sebos.

Esta edição em português chegou às minhas mãos em 1985, pelo que vejo na data ao lado da minha assinatura, na primeira página do livro. Nesta época eu estava cursando o terceiro ano da faculdade de arquitetura e urbanismo e lembro das primeiras discussões verdadeiramente alarmantes sobre a crise energética internacional e os efeitos devastadores, na natureza, do consumo desenfreado de energia pelos países desenvolvidos.

Também, nesta época, eu fazia parte da seleta equipe de técnicos do escritório do célebre Engenheiro Fúlvio Celso Petracco, reconhecido internacionalmente pelo seu amplo engajamento nas questões relativas à economia de energia. Certamente, foi por intermédio dele que tive acesso a este livro. Ele tinha uma obstinação profissional contagiante. Lembro com muito carinho quando ele chegava em nossas mesas, sempre nos finais das tardes de sexta-feira e silenciosamente largava sobre elas livros dos mais diversos assuntos, nos provocando a ter uma variada e constante atualização científica e literária.

Costumes, culturas, cinema, astronomia, física, química, matemática, filosofia, história, entre outros tantos assuntos que faziam parte do seu vasto conhecimento e de sua invejável biblioteca. Com o desafio dos livros vinha sempre a provocação para que na manhã dos sábados participássemos dos calorosos e divertidos debates internos sobre o conteúdo dos livros.


Que época maravilhosa da minha vida!!

Por muito tempo este pequeno livro esteve perdido, entre outros tantos que permaneceram encaixotados, desde quando saí da casa da minha família para casar. Para minha surpresa e felicidade reencontrei-o quando fiz minha mudança para a casa nova no final do ano passado e, por curiosidade, resolvi abrir aquelas velhas caixas que moraram comigo fechadas e pacientes ao longo dos 10 anos passados na minha moradia anterior.

Então, vai aqui mais uma dica de leitura, dentro daquele propósito de resgatar algumas obras de importância que tratam do equilíbrio do meio-ambiente e da ecologia.


O homem e a natureza
Sayyed Hossein Nasr
Zahar Editores
Coleção Espírito e Matéria
Rio de Janeiro – 1977
139 páginas


Os capítulos deste livro se baseiam em quatro conferências proferidas na Universidade de Chicago durante o mês de maio de 1966, fazendo parte de uma série de conferências anuais que têm lugar nessa Universidade sob o patrocínio da Fundação Rockefeller. O objetivo destas conferências era investigar, no mais amplo sentido, os problemas colocados à paz e à própria vida humana pelas várias aplicações da ciência moderna.

Nasr examina, neste livro, as raízes profundas do preocupante desequilíbrio entre o homem contemporâneo e a natureza. Já em 1968 os sintomas já eram visíveis e as causas não apenas se mantiveram mas se intensificaram, produzindo um ciclo de catástrofes que evolui em progressão geométrica, apontando inevitavelmente para uma provável catástrofe ambiental no planeta Terra.


São investigadas inicialmente as circunstâncias do advento do cristianismo e o alto preço pago no enfrentamento do panteísmo e naturalismo, então reinantes, em favor do restabelecimento (o termo ‘religião’ designa o resgate de uma ligação perdida) do elo Terra-Céu. Prossegue magistralmente sua exposição examinando momentos decisivos - religiosos, filosóficos econômicos e políticos - através dos séculos e que contribuíram para a grave situação mundial hoje reinante.

O alto valor intelectual deste pequeno e importante livro reside, muito acima do conjunto de informações, na coerência da narrativa, visão abrangente e encadeamento lógico irrepreensível de causas e efeitos.

Mais de quarenta anos já se passaram desde que este livro foi escrito. Durante esse período, a consciência da grande crise ecológica, que foi prevista neste trabalho, subitamente despertou na mente do homem ocidental. Na América, em certas partes da Europa e também no Japão foram dedicados dias especiais à salvação da Terra. Florestas foram derrubadas para produzir o papel necessário para se escrever a respeito dos vários aspectos da crise ecológica.

E, por fim, em 1972, em Estocolmo, teve lugar uma importante conferência internacional, resultando na criação de um órgão especial para estudar e aplicar meios de preservação do meio ambiente.

Não há dúvida de que as várias dimensões dos problemas que a crise ecológica colocou diante do homem tornaram-se muito mais bem conhecidas durante este período e de que se criou entre as pessoas uma maior conscientização no que diz respeito aos malefícios causados pelo homem moderno em sua lida com o ambiente natural, do qual depende de forma tão direta.

Essa preocupação é observada no número de livros e revistas dedicados a esse assunto, nos currículos criados em várias universidades para ensinar e treinar especialistas para enfrentar os problemas do meio ambiente, na fundação de órgãos nacionais e internacionais para supervisionar a utilização do meio ambiente, em grupos estabelecidos para aproximar os mais destacados cientistas e 'pensadores', a fim de que ponderem sobre o futuro do homem, e mesmo nas tentativas de se criar um novo tipo de tecnologia, chamada 'branda', 'intermediária' ou 'limitada', para atenuar os efeitos das indústrias pesadas sobre o meio ambiente.

Mas apesar de todos estes movimentos, a gravidade da crise ecológica e o perigo iminente que constitui para a vida humana permanecem irredutíveis. De certa forma, todos estes esforços parecem não ter alcançado o âmago do problema, pois com a menor das pressões econômicas externas, como esta provocada pela constante e crescente crise energética mundial, são sempre as leis recentemente promulgadas sobre o meio ambiente que são modificadas, em lugar da modificação dos modos de vida, que são os principais responsáveis pelas crises que o homem está enfrentando nos dias de hoje.

É por esta razão que este livro ainda tenha uma mensagem para aqueles que continuam interessados na busca de uma solução real para as difíceis condições do homem moderno, especialmente quando refletidas em sua total desarmonia com o ambiente natural. Nas páginas que se seguem, o autor procurou descobrir as raízes da crise ecológica através do exame da história da ciência no Ocidente, e buscando mesmo atribuir um novo papel a esta disciplina acadêmica. Nas décadas passadas, algum esforço foi feito neste sentido, mas de dimensão insignificante, tendo-se em vista a urgência e atualidade do problema.

Trata-se, portanto, de analisar não os principais 'avanços' da ciência, mas os motivos que puseram o homem em uma situação tão desesperadora diante do desenvolvimento e aplicação da ciência ocidental.

O livro propõe, também, a redescoberta das cosmologias tradicionais das culturas orientais como meio de obter uma nova visão do universo natural e seu significado. Isto também ocorreu, em escala notável, nos anos que se passaram, mas nem sempre de forma significativa ou saudável. Surgiram excelentes traduções e exposições novas de fontes tradicionais autênticas, referindo-se ao simbolismo das formas naturais e das várias cosmologias tradicionais. Mas, no cômputo geral, a enxurrada de material sobre estes assuntos entrou na arena da vida do homem moderno trajada com as vestes do ocultismo e conduzindo a onda dos movimentos pseudo-religiosos, aos quais se associa grande parte deste tipo de material.

Por fim, nas páginas que se seguem, o autor afirma claramente que a crise ecológica é apenas uma exteriorização de um ‘mal-estar’ interno e que não pode ser resolvida sem um renascimento espiritual do homem ocidental. Este tema foi intensamente abordado por Theodore Roszak em seu livro ‘Where the Wasteland Ends’ e ocasionalmente em outros trabalhos, mas não fosse pelos expoentes das doutrinas tradicionais como Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Marco Pallis e Martin Lings, cujos trabalhos são citados com freqüência neste livro, as forças para uma genuína renovação dentro das tradições religiosas no Ocidente não teriam avançado de forma apreciável.

Na realidade, foram as forças que desejaram repetir os erros do modernismo, dentro da própria estrutura das doutrinas e ritos religiosos, que ganharam ascendência, forçando as pessoas de pensamento elaborado a buscar em outras paragens os ensinamentos tradicionais genuínos.

Ao final do livro o autor ainda expressa a sua esperança no homem. No fato de que, enquanto aumenta a crise criada pelo esquecimento por parte do homem de quem ele realmente é, e na medida em que caem, um por um, os ídolos de sua própria confecção, ele comece uma verdadeira reforma de si mesmo, que sempre significa um renascimento espiritual, e através deste renascimento alcance uma nova harmonia com o universo da natureza que se estende a sua volta.

De outra forma, é inútil esperar uma harmonia com esta grande teofania, que é a natureza virgem, enquanto permanecermos em esquecimento e indiferentes à origem dessa teofania, tanto além da natureza quanto no âmago da existência do homem.

Nas suas palavras:

"Que as páginas deste livro sejam um modesto auxílio em chamar a atenção para as raízes dos problemas cujos sinais externos muitos já distinguem, raízes que se inserem profundamente no coração endurecido e na mente obliterada do homem moderno, cujo destino, não obstante, o chama a realizar seu papel de vice-gerente de Deus na terra e protetor da ordem natural, e de testemunha da verdade de que 'Omnis natura Deo lognitus' (a natureza toda fala de Deus)".

A tese apresentada neste livro é simplesmente a seguinte: embora a ciência seja legítima por si só, o papel e a função desta e sua aplicação se tornaram ilegítimos e mesmo perigosos devido à falta de uma forma mais elevada de conhecimento, no qual a ciência pudesse ser integrada, e à destruição dos valores sagrados e espirituais da natureza.

Para remediar esta situação o conhecimento metafísico pertinente à natureza tem de ser revivido e a qualidade sagrada da mesma ser-lhe novamente conferida. Para consecução deste fim, a história e a filosofia da ciência têm de ser reinvestigadas em relação à teologia cristã e à filosofia tradicional da natureza que existiram durante grande parte da história européia.

A própria doutrina cristã deveria ser ampliada para incluir uma doutrina que diga respeito ao significado espiritual da natureza, e isto com o auxílio das tradições metafísicas e religiosas do Oriente, onde tais doutrinas ainda estão vivas.

Estas tradições não seriam tanto a origem de um novo conhecimento, mas um auxílio à anamnese, à lembrança de ensinamentos do Cristianismo, esquecidos agora em sua grande maioria. O resultado seria conferir-se, mais uma vez, uma qualidade sagrada à natureza, fornecendo uma nova base para as ciências, sem negar seu valor ou legitimidade dentro de seu próprio domínio.

Seria a própria antítese do movimento corrente nos dias de hoje sob o nome de 'teologia secular'. Não significaria secularizar a teologia, mas conferir um significado sagrado e teológico àquilo que o homem moderno considera ser o mais secular de todos os domínios, a saber, a ciência.

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