domingo, 15 de março de 2009

Lucio Costa

Lucio Costa nasceu na França, em 1902, chegou ao Rio de Janeiro recém-nascido e voltou com a família para Paris por mais seis anos. Depois estudou na Suíça e na Inglaterra e retornou ao Brasil para cursar belas-artes, conforme desejo de seu pai. Daí resultou um homem de maneiras e modo de trajar aristocrático, quase sempre de terno e gravata (ou, pelo menos, de camisa social) e um pulôver pendurado no braço, independentemente da temperatura que os termômetros marcassem nos trópicos. Mais tarde, pince-nez e longos bigodes brancos deram o toque final à estampa.

Sobre sua visão de mundo, a principal marca dessa formação foi uma radical independência. Ele nunca se preocupou em alinhar-se à esquerda ou à direita nem se furtou a tomar posições antipáticas à opinião pública. Em meados da década de 70, quando nove entre dez cariocas eram contra a demolição do Palácio Monroe, sede do Senado até a inauguração de Brasília, Lucio Costa, então membro do Conselho de Planejamento Urbano do Rio de Janeiro, deu um parecer contrário ao tombamento, argumentando que o prédio carecia de valor arquitetônico.

Em 1974, em carta a Niemeyer, conhecido por sua militância comunista, manifestou uma posição que, principalmente naquela época, deixaria de cabelo em pé qualquer militante de esquerda.


"As sociedades de livre empresa poderão talvez alcançar mais depressa o bem-estar social e a felicidade individual a que todos aspiramos, porque são mais dinâmicas do que as sociedades socialistas", diz.

Também em relação à arquitetura, a independência foi sua marca. Detestava o termo "modernista", embora tenha sido o grande formulador da arquitetura moderna no Brasil e influenciado toda uma geração de arquitetos que se formou sob o lema "simplicidade, perfeita adaptação ao meio e à função e conseqüente beleza". Na vida pessoal, isso se traduziu num até exagerado desapego a bens materiais. Levou até o fim uma vida modesta.

Tinha entre seus grandes prazeres comer chocolate amargo com chocolate ao leite, acompanhado por vinho branco seco. E circulava pelo Rio de Janeiro a bordo de um Fusquinha que, ao ser herdado por Julieta, sua neta mais velha, tinha um buraco no chão. Como não gostava de oculistas, comprava seus óculos em farmácia – o que prejudicou sua visão a ponto de deixá-lo quase cego no fim da vida.

O acervo de sua produção tem valor incalculável, principalmente a profusão de croquis que, no caso dos projetos de arquitetura, permitirão em muitos casos reconstituir boa parte de seu processo de criação. Mas os desenhos podem ser, também, simplesmente objetos de fruição.
Dono de um traço belíssimo, Lucio Costa fazia registros minuciosos de fachadas, bairros e cidades quando viajava. Dificilmente existirá, em Portugal, melhor registro das fachadas de cidades como Porto, Lisboa ou Évora que os feitos por ele no início da década de 50. São quatro pequenos blocos de desenho, que o arquiteto morreu julgando desaparecidos e foram recuperados na recente arrumação promovida por Helena, sua segunda filha, que decidiu fazer uma reforma e mudar-se para o apartamento do pai.

Embora todo o conjunto seja fascinante, o apelo de tudo o que se refere a Brasília é quase irresistível. São dezenas os croquis e anotações guardados por Lucio Costa desde que fez o primeiro traço da nova capital, que começou a ser desenhada nos doze dias de viagem de navio, voltando de Nova York em 1956.

A história é pouco conhecida. Lucio Costa inscreveu-se em segredo no concurso que escolheria o plano piloto da nova capital e trabalhou durante dois meses absolutamente sozinho, no escritório e em sua casa no Leblon. Quem lembra em detalhes essa empreitada solitária é o engenheiro Augusto Guimarães, que foi chefe da divisão de urbanismo da Novacap, a empresa criada para desenvolver e construir Brasília.

"Eu estava desenvolvendo com ele um outro trabalho e não percebi o menor indício de que ele estava fazendo o projeto. Li no Diário de Notícias que ele havia ganho a concorrência", conta Guimarães.

Como num corte cinematográfico, tem-se acesso ao relato do crítico de arte Flávio de Aquino, que assistiu à escolha do plano piloto na qualidade de assessor de Oscar Niemeyer, que representava a Novacap na comissão. O projeto de Lucio Costa chegou dez minutos antes do prazo final.

"Eram rabiscos toscos, feitos a lápis de cor, pequenos desenhos a nanquim e um texto batido a máquina", conta Aquino, em artigo publicado em 1974 pela revista Manchete. "Ficamos desiludidos. Mas o presidente da comissão, sir William Holford, começou a estudar as pranchas. De repente, exclamou, entusiasmado: Esta é a maior contribuição urbanística do século XX!"

Com efeito, passados tantos anos depois da inauguração de Brasília, é difícil ter a dimensão do que foi a ousadia de Juscelino Kubitschek ao decidir transferir a capital para o meio do cerrado – em meados dos anos 50, para o meio do nada. E Lucio Costa compreendeu como poucos o significado dessa decisão.

"A cidade não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial", disse na Memória Descritiva do Plano Piloto de Brasília, em 1957.

Daí sua profunda mágoa com a saraivada de críticas que Brasília recebeu. Embora tenha, ele próprio, discordado muitas vezes do rumo tomado pelo desenvolvimento da cidade e passado muitos anos se recusando a rever a capital, sempre defendeu sua criação. Admitia, por exemplo, que a cidade não era concebida para a flânerie (passeios a pé, em francês), devido às longas distâncias. Mas jamais concordou que Brasília fosse uma cidade desumana, uma das teclas prediletas de seus críticos.

A mágoa de Lucio Costa é muito conhecida e está fartamente documentada. Menos explorado é seu reencontro com a cidade, como está narrado no roteiro feito em 1986 para fotografar a Brasília "verdadeira", que ele encontrara dois anos antes, quando foi à capital em companhia de sua filha Maria Elisa.

"Ele ficou uma semana solto por lá e voltou fascinado com a constatação de que já havia toda uma geração nascida na cidade", lembra Maria Elisa. No cabeçalho, uma recomendação geral: "Brasília + gente, convívio normal das pessoas com a beleza". Segue-se uma lista de situações que, de acordo com Lucio Costa, comprovavam que, da perspectiva humana, sua criação era um êxito. E uma recomendação final: "Tudo bem fotografado, de um ponto de vista a favor, otimista, e não 'contra'".

Por Lucila Soares
http://veja.abril.com.br/180804/p_062.html

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