terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Sobre o Bem e o Mal

Ao longo deste ano transcrevi alguns textos do livro O Profeta (Khalil Gibran), que supunha perdido e que achei durante a mudança do meu escritório para a nova sede, e ainda me surpreendo com a repercussão positiva deles. Naquela ocasião relatei minha impressão de que estes textos, escritos como fábulas e com palavras simples, tinham o poder de sintetizar os sentimentos recorrentes das pessoas, evidenciando o senso comum sobre assuntos e emoções do cotidiano, nos fazendo ver e entender que, de certa forma, passamos todos por situações muito semelhantes ao longo da nossa vida.

Nesta semana, como contribuição de uma leitora, recebi por e-mail mais um texto deste livro que discorre sobre o bem e o mal, que transcrevo a seguir. No e-mail ela externa uma preocupação - com a qual me associo - sobre o antagonismo das emoções diante de fatos que contradizem a nossa forma de pensar e as ações das pessoas diante disto. Coincidência, ou não, escrevi sobre isto num artigo para a Zero-Hora (ZH, 26/11/2014, página 22). Esta polarização - que nos categoriza discriminadamente - entre pretos e brancos, reacionários ou reformistas, pobres e ricos, bons ou maus, traz na síntese destas emoções acaloradas a realidade de que estamos cada vez mais intolerantes com as diferenças e com as ações e opiniões que vão na contra-mão da forma como vemos o mundo e vivemos as nossas vidas.

De certa forma, existe uma boa dose de individualismo nesta forma de pensar que nos faz achar que se as coisas não são como as desejamos, elas são imperfeitas e, portanto, passíveis de julgamentos. Em consequência disto, a punição do "outro" passa a ser a ação corretiva e conciliadora das frustrações de quem defensivamente pensa assim. A falsa idéia de que "o inferno são os outros", tem levado muita gente boa a se perder na construção dos seus sonhos e desejos. E ela termina muito bem o seu delicado e-mail nos chamando à razão para olharmos as coisas - fatos e pessoas - como elas são e não como os nossos ilusórios desejos idealizadores gostariam que elas fossem, nos lembrando da necessária lucidez e do sensato equilíbrio diante das pedras do caminho e da tolerância que temos que ter diante das diferenças e dos erros. O erro, como sabemos, é sempre relativo, é o registro das possibilidades e está disponível para qualquer um experimentar, refletir, crescer e superar.

Sobre o Bem e o Mal

E um dos anciãos da cidade disse: Fala-nos do Bem e do Mal. E ele respondeu: Do bem dentro de vós, eu posso falar, mas não do mal. Pois o que é o mal além do bem torturado por sua própria fome e sede? Em verdade, quando o bem está com fome, busca alimento mesmo nas cavernas escuras, e quando tem sede, bebe até mesmo das águas paradas.

Quando sois bons, sois inteiros. Mas quando não sois inteiros, não sois maus. Pois uma casa dividida não é um esconderijo de ladrões; é apenas uma casa dividida. E um barco sem leme pode navegar sem rumo entre perigosos rochedos, mas não afundar.

Sois bons quando buscais dar de vós mesmos. Mas não sois maus quando buscais obter para vós mesmos. Pois quando lutais para ganhar, sois apenas uma raiz ligada à terra que suga no teu seio. Certamente os frutos não podem dizer à raiz: “Seja como eu, maduro, completo e sempre generoso da vossa abundância”. Pois para o fruto, dar é uma necessidade, como receber é a necessidade para a raiz.

Sois bons quando estais totalmente conscientes em vosso discurso, mas não sois maus quando dormis, enquanto vossas línguas tropeçam sem sentido. E mesmo o discurso hesitante pode fortalecer uma língua fraca.

Sois bons quando caminhais para o vosso objetivo com passos firmes e corajosos. Mas não sois maus quando andais mancando. Mesmo aqueles que mancam não andam para trás. Mas vós, que sois fortes e ligeiros, não mancai na frente dos mancos, julgando que isto é bondade.

Sois bons de incontáveis formas, e não sois maus quando não sois bons, estais apenas atrasados e com preguiça. É uma pena que as lebres não possam ensinar a velocidade às tartarugas.

Em vossa aspiração pelo vosso ser gigante está a bondade; e esta aspiração está em todos vós. Porém, em alguns de vós, esta aspiração é uma torrente correndo vigorosamente para o mar, levando os segredos das montanhas e as canções da floresta. E em outros, é um riacho calmo, que se perde em curvas, se dobra e demora para chegar à praia. Mas que aquele que aspira muito diga para aquele que aspira pouco: "Por que és vagaroso e hesitante?" Pois apenas os verdadeiramente bons não perguntam aos desnudos: "Onde estão tuas vestes?" e aos que não tem lar, "O que aconteceu com a tua casa?"



O Profeta
Khalil Gibran
L&PM Pocket 222
Primeira edição
Páginas 82-85
Abril de 2001

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