quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O artesão

É preciso resgatar o trabalho lúdico. O trabalhador atual não sente mais prazer em fazer as coisas bem-feitas, diz o sociólogo Richard Sennett

Entre as centenas de títulos lançados nos últimos meses pela indústria editorial de língua inglesa, é possível pinçar, aqui e ali, uma obra realmente profunda e, sem ousadia, indispensável. É o caso de The Craftsman (”O artesão”), de Richard Sennett.


O sociólogo é uma daquelas personalidades iluminadoras no debate de idéias. Norte-americano de nascimento, mas um quase inglês por vocação (mora há décadas em Londres, onde leciona na London School of Economics and Political Science), ele ficou conhecido nos anos 90 como mentor de Tony Blair e um dos pais intelectuais da Terceira Via. Mas ele é mais do que isso. Para achar equivalentes intelectuais a Sennett talvez seja necessário recuar à geração do falecido E. P. Thompson, sociólogo e autor do clássico The Making of the English Working Class (”A formação da classe trabalhadora inglesa”), que chacoalhou o marxismo nos anos 60. Thompson provava que, para definirmos o que é uma classe social, não bastavam distinções econômicas, mas também elementos culturais e psicológicos. Sennett, por sua vez, também possui esse dom, bem comum à estirpe de pensadores anglo-saxões como Thompson, de criar obras que são influentes e provocam mudanças em políticas públicas ou privadas.

Nos anos 90, seu estudo A Corrosão do Caráter serviu em muito para abrandar exageros liberais ainda da era Thatcher. Por sua vez, Respeito: a Formação do Caráter num Mundo Desigual inspirou políticas públicas de Blair. (Malandramente, o político acabou usando o cacife e a reputação ilibada de Sennett para legitimar a instauração de uma versão mais palatável do tolerância zero” nas ilhas britânicas no pós 11 de Setembro).

Não será de estranhar se, na próxima década, estivermos falando de temas como o valor do trabalho artesanal na vida corporativa. Pois é disso que trata The Craftsman. Para Sennett, nosso senso de bem-estar e de inclusão social deriva em muito de uma atividade à qual a moderna jornada de trabalho é hostil - o velho e paciente artesanato.

Mas não pense que o sociólogo é um sujeito nostálgico. “Quando falo do artesão, estou me referindo tanto ao mestre que faz violinos quanto ao cientista no laboratório, ou à equipe que desenvolve o software Linux”, diz Sennett. “Artesanato”, na sua definição, é simplesmente uma atividade que é aprendida pela observação, prática e repetição. Ela tem, assim, um caráter lúdico, como as brincadeiras de criança.

Numa medida aproximada, estima o sociólogo, são necessárias 10 mil horas para que alguém atinja a maestria em algo, seja esse algo aprender uma arte marcial ou a arquitetura de softwares.

O perigo, afirma o sociólogo, é que a cultura moderna - e em especial a cultura corporativa moderna - não valoriza esse modus operandi. “Existe esse impulso humano básico de ter prazer nas coisas bem-feitas e ver no zelo artesanal um fim em si mesmo. Desafortunadamente, fazer um bom trabalho não é mais garantia de sucesso. Nas empresas e na política, os tubarões e incompetentes não encontram problemas para se tornar bem-sucedidos”, critica Sennett.

Ironicamente, afirma, o desprestígio do artesanato trouxe a reboque uma hipervalorização das ditas artes (pintura, música, etc.), talvez como compensação à perda social decorrente. “Nós ficamos hipnotizados frente a noções como ‘inspiração’, ‘gênio’, ‘criador solitário’, quando, no ambiente em que viveu Da Vinci [no qual o artesão era um tipo legítimo, não estigmatizado como nos dias de hoje], as artes plásticas eram vistas como uma atividade comum. Pelo próprio Da Vinci. Fazer um bom quadro não era diferente de fazer uma bela cadeira”, diz.

Para o bem do equilíbrio humano, receita o sociólogo, o valor da qualidade artesanal terá de ser resgatado. No que isso poderá afetar a vida das corporações? “Para que as horas da jornada de trabalho sejam significativas é preciso que haja o desejo por parte do profissional de fazer um bom trabalho, e de se orgulhar dele”. Segundo estudos britânicos e norte-americanos, a competência e o engajamento profissional são as duas principais fontes de auto-estima do trabalhador. A proposta de Sennett caminha nessa direção.

Álvaro Oppermann
Revista Época
Edição 15 (maio de 2008)

Nenhum comentário: