quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Verdade

Carlos Drummond de Andrade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar.
Cada um optou conforme seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.



CORPO
Novos Poemas
Carlos Drummond de Andrade
Editora Record
Rio de Janeiro
1984

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Ausência

Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço
e invento exclamações alegres,
porque a ausência,
essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.



CORPO
Novos Poemas
Carlos Drummond de Andrade
Editora Record
Rio de Janeiro
1984

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Joe Cocker

John Robert Cocker
1944 – 2014



Foi na garagem da casa do meu amigo Renato, em Oásis do Sul, no verão de 1976, que ouvi pela primeira vez a voz vibrante e emocionada de Joe Cocker interpretando "With a Little Help from My Friends". Renatinho, como era chamado pelos amigos, trabalhava na vidraçaria do pai em Porto Alegre e era, naquela época, uma das únicas pessoas da turma da praia a ter grana suficiente para manter uma super aparelhagem de som (toca-discos, gravadores de rolo, amplificadores, enormes caixas de som, muitas luzes e um globo giratório espelhado), muitos discos de vinil com uma programação variada e atualizadíssima (long-plays e compactos), capazes de animar as nossas noites ao longo de muitos verões, e uma Caravan 76 novinha que nos conduzia – e transportava a aparelhagem – para muitos passeios animados pelo litoral quando íamos “colocar som” em alguma festinha particular. Sua aparelhagem de som era profissional e, por esta razão, frequentemente animava as “reuniões dançantes” no clube da nossa praia, a SAPOS (Sociedade Amigos da Praia Oásis do Sul). Passamos muitos verões juntos nos divertindo antes da vida adulta nos fazer atender outras demandas e nos conduzir por caminhos distintos. Infelizmente, perdemos o contato. Alguns verões atrás, passeando em Oásis do Sul, fui visitar a sua casa - que ficava ao lado da casa de um querido tio - e pude ver que ela já estava bem diferente, reformada e ampliada, mas permanecia ainda com a velha garagem no fundo do terreno, guardando os segredos das nossas impaciências juvenis e dos ótimos verões de um tempo que não volta mais.

Joe Cocker nasceu em Sheffield, Reino Unido, no dia 20 de maio de 1944. John Robert Cocker foi um dos maiores cantores britânicos de rock, influenciado no início da carreira pela "soul music". Começou sua carreira musical em sua cidade natal aos quinze anos de idade. Com o nome artístico de Vance Arnold tocou com The Avengers, depois Big Blues (1963) e Grease Band (1966). Seu primeiro grande sucesso foi a interpretação da antológica canção “With a Little Help from My Friends”, uma versão da música dos Beatles gravada com o guitarrista Jimmy Page (Led Zeppelin). Em 1969 aparece no Festival de Woodstock (15, 16 e 17 de agosto de 1969), com um show consagrador. Nas palavras dele: “...tivemos uma reação emocionante quando tocamos With a Little Help from My Friends. Foi como um sentido maravilhoso de comunicação. Era o último número do show, eu lembro, mas senti que finalmente tínhamos nos comunicado com alguém”. Nos shows, Cocker exibia uma intensidade física incrível enquanto cantava, com uma envolvente presença teatral no palco. No começo dos anos 70 ele teve problemas com drogas e álcool que acabaram atrapalhando sua carreira. Conseguiu, entretanto, se livrar das drogas e retornar aos palcos nos anos 80, conseguindo grande sucesso até os anos 90. Infelizmente morreu hoje aos 70 anos de idade, vítima de um câncer de pulmão em sua casa no Colorado, Crawford. Certamente, fará muita falta no cenário musical atual.

Discografia

With A Little Help From My Friends (1969)
Joe Cocker! (1969)
Mad Dogs & Englishmen (1970)
Joe Cocker (1972)
I Can Stand A Little Rain (1974)
Jamaica Say You Will (1975)
Stingray (1976)
Greatest Hits (1977)
Luxury You Can Afford (1978)
Sheffield Steel (1982)
Civilized Man (1984)
Cocker (1986)
Unchain My Heart (1987)
One Night Of Sin (1989)
Joe Cocker Live (1990)
Night Calls (1992)
The Best Of Joe Cocker (1993)
Have A Little Faith (1994)
The Long Voyage Home (1995)
Organic (1996)
Across From Midnight (1997)
Greatest Hits (1998)
No Ordinary World (1999)
Respect Yourself (2002)
Heart & Soul (2005)
Hymn for my soul (2007)
Hard Knocks (2010)
Fire It Up (2012)


With a Little Help From My Friends
Com Uma Pequena Ajuda De Meus Amigos

O que você pensaria se eu cantasse desafinado?
Você se levantaria e me abandonaria?
Me empreste suas orelhas e eu cantarei uma canção para você
E eu tentarei não cantar fora de tom

Oh, consigo com uma pequena ajuda de meus amigos
Eu me levanto com uma pequena ajuda de meus amigos
Tentarei com uma pequena ajuda de meus amigos

O que eu faço quando meu amor está longe
Te preocupa estar só?
Como eu me sinto ao final do dia?
Você está triste porque você está sozinho?
Não, eu consigo com uma pequena ajuda de meus amigos
Eu me levanto com uma pequena ajuda de meus amigos
Tentarei com uma pequena ajuda de meus amigos

Você precisa de alguém?
Eu preciso de alguém para amar
Pode ser qualquer um?
Eu quero alguém para amar

Você acredita em amor à primeira vista?
Sim, tenho certeza que isto acontece toda hora
O que vê você quando apaga a luz?
Eu não posso te contar, mas eu sei que é meu
Oh, consigo com uma pequena ajuda de meus amigos
Eu me levanto com uma pequena ajuda de meus amigos
Tentarei com uma pequena ajuda de meus amigos

Você precisa de alguém?
Eu preciso de alguém para amar
Pode ser qualquer um?
Eu quero alguém para amar

Oh, consigo com uma pequena ajuda de meus amigos
Tentarei com uma pequena ajuda de meus amigos
Oh, eu me ponho alto com uma pequena ajuda de meus amigos
Sim, eu consigo com uma pequena ajuda de meus amigos
Com uma pequena ajuda de meus amigos

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Dia Especial

16/12/2014

Nem todos os dias são perfeitos, nem todos os dias são alegres, nem todos os dias são tão ruins assim... Mas alguns dias são especiais. Ontem foi um destes dias especiais. Passei a tarde na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Ulbra, em Canoas, participando das Bancas Finais do Trabalho de Conclusão de Curso.

No trânsito, no caminho para Ulbra, fui lembrando da minha longa jornada naquela escola onde comecei como aluno e tive o privilégio de me tornar professor. Lá meu aprendizado foi duplo: aprendi os fundamentos do ofício da arquitetura e urbanismo e, também, da docência tendo a singular oportunidade de dividir a sala de aula com muitos dos meus professores, grandes mestres da arquitetura e fundadores da antiga Facau (Faculdade Canoense de Arquitetura e Urbanismo). Foram 28 anos de dedicação ininterrupta, 6 como aluno e 22 como professor. Entrei no vestibular de 1983 e sai somente em 2011, sendo naquela ocasião homenageado como paraninfo da turma de 2011/1. Que saudade!

Deixei o carro no estacionamento coberto e fui descendo a rampa a pé em direção ao prédio 14, onde funciona a Fau. Nossa... No caminho vi um filme bom passando diante dos meus olhos. Cheguei mais cedinho e fui visitar os lugares que eu gostava muito naquele Campus. A capela, ainda com seus murais artísticos inacabados, os corredores da biblioteca onde encontrei muitos dos livros nos quais estudei, a maquetaria – que agora está em novo lugar – os bares e quiosques onde nos reuníamos com os demais professores e diversos alunos para discutir as particularidades do nosso ofício na hora do recreio, a sala 330 (antiga sala do TCC, agora laboratório de matemática), o bar do laguinho – infelizmente fechado e abandonado, mas onde podemos curtir uma das mais lindas vistas do Campus ao entardecer – e a beleza dos plátanos, na longa avenida de acesso, que mudavam de formas e cores nas diversas estações do ano. Como esquecer daquele caminho coberto em direção à antiga maquetaria e ao bar do laguinho, lateralizado pelas laranjeiras que tornavam aquele passeio uma experiência de aromas inesquecíveis a anunciarem anualmente a chegada da primavera.



Encontrei muitos dos antigos professores dos diversos cursos da Ulbra, parceiros de luta no duro período em que, participando várias vezes da diretoria da Adulbra (Associação dos Docentes da Ulbra), tivemos que enfrentar a reitoria nas reuniões intermináveis para discutir os futuros da Universidade. Já naquela época distante intuíamos que alguma coisa não andava bem na administração geral.

Que alegria participar dos painéis onde os alunos apresentaram seus trabalhos. Fui coordenador do TCC na FauUlbra durante os 6 últimos anos de permanência e não pude deixar de me emocionar entrando na sala e vendo os trabalhos já preparados para apresentação e seus autores, alegres pela conclusão do curso, mas também aflitos pelo importante momento. Desde já meu abraço caloroso aos alunos que propiciaram com seus projetos as grandes discussões de ontem sobre os temas centrais da nossa profissão. À vocês meu respeito e admiração pelas teses levantadas e defendidas. São eles, Alice Pichinatti (Abrigo Municipal para Menores em Canoas), Gabriela Ely Werres (Casa do Estudante Universitário de Canoas), Fernanda Maciel (Análise e Reestruturação Urbana: Porto de Estrela), Gabriela Gonzáles (Midiateca Pública em Porto Alegre), Heriane Santos (Casa de Repouso para Idosos em Torres) e Tainara Zili (Edifício Corporativo em Canoas).

A tarde transcorreu tranquila e nem vimos o tempo passar. Ainda estou sob os alegres efeitos da emoção de ter estado lá. Portanto, vou neste breve textinho, agradecendo emocionado aos queridos amigos que me convidaram para participar deste evento e me recepcionaram tão bem. Super beijo para a Patrícia Nerbas (grande parceira e colaboradora da mudanças que promovemos no curso e, em especial, no TCC) e um abraço apertado no Guilherme Almeida (meu ex-aluno na FauPucRS e que, desde aquela época, demonstrava vocação latente para a docência). Mais uma vez, meus mais sinceros agradecimentos por esta oportunidade. Este convite veio em boa hora. Num momento de reflexões pessoais, trocas de direções e redefinição de novos rumos e desafios.

Ontem, no caminho de volta para casa, experimentando a emoção de ter estado lá, parei no Jardim do Lago e me vi viajando no tempo, nas lembranças e revisitando muitos acontecimentos marcantes. Exatamente ontem, dia 16/12/2014, completei vinte e seis anos de formado. É incrível como na lida diária, movidos pelas demandas e solicitações pontuais da vida, não percebemos a passagem do tempo. Ainda lembro do rosto de cada um dos meus colegas de atelier, das muitas festas, das noites intermináveis nos bares intermináveis da cidade, das viagens de estudos, da praia da Pinheira em SC sítio para os trabalhos de diplomação para todos os alunos daquele ano (1988), dos muitos encontros estudantis, do bar do IabRS, do nosso atelier de estudantes (eu, Pery, Juarez e Luizinho) – que virou ponto de encontro dos colegas da Fau – e que ficava em Porto Alegre, no segundo pavimento de um lindo e misterioso casarão antigo na Rua Marechal Floriano, quase esquina com a Rua Duque de Caxias, dos churrascos que fazíamos no antigo galpão de madeira num bosque dentro do Campus Canoas, das brincadeiras e jogos de bola nos corredores, das rivalidades esportivas que chegavam a transferir datas de provas e entregas de trabalhos nos dias dos grandes jogos, das rádios que escolhíamos quando virávamos as noites trabalhando e mandando músicas e recadinhos para os colegas através dos DJ’s, dos dias e noites em claro para execução dos nossos sonhos e ideais transformados em grandes projetos.



E, principalmente, lembro dos bons companheiros desta jornada...

Então fico me perguntando para onde foram os velhos e inseparáveis companheiros? Lembro dos seus sonhos e dos seus talentos, da vontade de vencer e transformar este mundo desigual. Lembro de tantas emoções boas, do juramento que fizemos de mãos dadas, às vésperas da formatura, numa noite de lua cheia no estacionamento da faculdade, ainda vestidos com a toga que tínhamos naquela noite experimentado, de que jamais nos separaríamos, por mais que a vida assim nos exigisse.

Onde estão os velhos companheiros?

Olho em minha volta e vejo tanta coisa ainda por fazer! Muitos sonhos e pessoas ficaram pelo caminho. É engraçado como se propagam os sentimentos verdadeiros, mesmo com a distância e com a ação do tempo, eles não morrem. Não que vivam das lembranças ou dos fatos do passado. O passado é somente uma referência temporal. Se ainda sentimos uns aos outros, então ainda estamos no presente. Mesmo quando a vida segue o seu rumo.

Mais uma vez, muito obrigado pelo carinho manifesto no convite para estar ontem com vocês naquela escola que ainda sinto minha! A alegria da tarde de ontem e a energia positiva desta geração de novos arquitetos ficarão para sempre tatuadas no meu coração!

Contem sempre comigo!

Força e Honra
Saudação Romana

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

As vantagens dos concursos para a contratação de projetos

Autor: André Pachioni Baeta
Data: 09/12/2014

A principal causa de insucesso na execução de obras públicas são os projetos deficientes, que vão originar toda sorte de irregularidades que se tem notícia no Brasil. Várias são as origens do problema, podendo-se citar a falta de planejamento dos órgãos contratantes, materializado no açodamento para a licitação da obra, bem como a carência de pessoal capacitado para analisar e receber os projetos contratados. Outro motivo é bem conhecido: a forma equivocada da contratação dos trabalhos de engenharia e de arquitetura, por essência serviços de natureza técnica profissional especializada.

Serviços de engenharia consultiva envolvem um esforço intelectual e criativo, o que desaconselha sua contratação mediante licitações do tipo “menor preço”. Nesse tipo de torneio são frequentemente observados mergulhos nos preços, de forma que o projeto provavelmente não será desenvolvido pela empresa mais qualificada e o contrato resultante poderá ser ajustado com preço inexequível para remunerar adequadamente um serviço de qualidade.

Da mesma forma, a adoção de licitações do tipo “técnica e preço” para a contratação de projetos, como indicado no art. 46 da Lei 8666/93, tem sido ineficaz para resolver a questão, conforme comprovam inúmeras licitações de diversos órgãos públicos. A despeito de o critério de julgamento utilizado em tais certames ser uma combinação de melhor técnica e preço, os projetos recebidos são tão ruins quanto os contratados por menor preço. Além disso, as licitações de técnica e preço são complexas e demoradas, sendo de difícil observância a exigência legal de estabelecimento de critérios objetivos para avaliação da nota técnica, o que induz os gestores a pontuarem as licitantes unicamente por sua experiência. Para que esse tipo de licitação seja realmente eficaz, deve necessariamente haver a valoração das soluções de projeto a serem empregadas, e não somente a pontuação individual das licitantes decorrente da experiência profissional das empresas ou de seus responsáveis técnicos, geralmente aferidas por meio de atestados técnicos.

A utilização de atestados técnicos não proporciona a valoração comparativa das vantagens técnicas das soluções existentes nas propostas dos licitantes, restringindo-se geralmente a quesitos de habilitação das empresas. Tal sistemática não estimula os projetistas a elaborarem propostas que resultem em real benefício técnico, na medida em que elas não serão valoradas por tal critério. Na prática, há apenas incentivo para que os particulares façam propostas economicamente mais vantajosas em relação aos concorrentes, o que desvirtua o processo de técnica e preço em uma licitação de menor preço.

A contratação integrada instituída pelo RDC, na prática, também não tem sido a solução. Ao utilizar anteprojetos com nível de definição precário, em vez de oferecer aos licitantes projetos básicos completos e consistentes, a Administração suprime informações imprescindíveis para avaliação de riscos e dos reais custos da obra, fato que trará problemas diversos na execução contratual. Além disso, está se colocando a raposa para tomar conta do galinheiro, pois há um conflito de interesses nesse regime de execução contratual, uma vez que o construtor assume o encargo da elaboração dos projetos, preferindo implantar soluções construtivas de menor custo, ao invés daquelas que assegurem maior durabilidade, qualidade e utilidade para o proprietário da obra. Como o preço a ser recebido pelo contratado é fixo, não há garantias de que o construtor, ao elaborar o projeto, irá necessariamente escolher as melhores soluções para o contratante da obra em detrimento dos seus lucros.

Posto o problema, é reconfortante verificar que sua resolução está na própria Lei 8666/93, estabelecendo que, ressalvados os casos de inexigibilidade de licitação, os contratos para a prestação de serviços técnicos profissionais especializados deverão, preferencialmente, ser celebrados mediante a realização de concurso, com estipulação prévia de prêmio ou remuneração. Infelizmente, devido à falta de uma regulamentação apropriada dessa modalidade licitatória, são pouco comuns as contratações de projetos mediante concursos.

O concurso é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes do instrumento convocatório ou regulamento, que indicará a qualificação exigida dos participantes, as condições de realização do concurso e os prêmios a serem concedidos e as diretrizes e a forma de apresentação do trabalho.

A referida modalidade licitatória basicamente funciona a partir da definição do objeto e da definição preliminar de premiações e honorários. Os participantes submetem suas soluções (em nível de estudo preliminar ou de anteprojeto) para a obra idealizada. Uma comissão julgadora, composta a partir da indicação dos promotores e organizadores do concurso, seleciona o melhor projeto segundo os parâmetros estabelecidos no regulamento do certame. O autor do projeto premiado é então contratado para o desenvolvimento do projeto executivo.

A preferência pelos concursos não é uma particularidade da legislação brasileira, e sim uma tendência mundial. A XX Conferência Geral da UNESCO (1978) recomendou aos países membros a adoção dos concursos públicos como forma adequada de licitação para a obtenção dos projetos de arquitetura e urbanismo. A experiência internacional com concursos tem diversos exemplos marcantes, como os projetos da Casa Branca, em Washington, do edifício sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque e do Teatro da Ópera de Sydney. No Brasil, as sedes da Petrobrás no Rio de Janeiro e em Vitória, bem como a Terceira Ponte do Lago Sul, em Brasília, estão entre os exemplos mais conhecidos de utilização de concursos. Destaque-se que o próprio projeto urbanístico de Brasília foi escolhido por meio de concurso público.

Vejamos a seguir algumas vantagens do concurso:

1 - Com o concurso contrata-se o melhor projeto e não a melhor empresa

As licitações de melhor técnica e preço estão focadas na seleção de uma virtual “melhor empresa” projetista, o que não significa necessariamente em selecionar o melhor projeto. Não há nenhuma garantia da qualidade do projeto que será futuramente confeccionado. Há grande chance de se estar comprando gato por lebre, pois a Administração Pública contratará às cegas sem saber que projeto será recebido.

A lógica do concurso é diversa, centrada na seleção do melhor projeto e não na melhor empresa projetista. Por meio do concurso é possível visualizar e escolher a solução mais adequada para um problema específico, sendo a forma mais segura e econômica para a contratação de projetos de arquitetura, pois permite a avaliação e a escolha do serviço antes de sua aquisição.

2 - A Administração pública sabe qual é o projeto que está comprando

Assim, o concurso é a única modalidade licitatória de projetos em que o contratante tem pleno conhecimento da solução adotada antes de contratar e pagar pelo serviço. Ao receber as propostas, sua seleção se dará com base em desenhos conceituais, perspectivas, memoriais ou maquetes eletrônicas do futuro edifício, o que proporcionará uma visão clara do projeto que será futuramente desenvolvido.

O contratante avaliará as diversas propostas recebidas dos participantes do concurso, escolhendo aquela que é a mais adequada. E essa avaliação não precisa se restringir apenas aos aspectos estéticos de um projeto arquitetônico, podendo também existir outros critérios de avaliação das soluções técnicas, relacionadas com a qualidade, desempenho, produtividade, durabilidade, segurança, prazo de entrega, custo de execução, custo de manutenção, sustentabilidade ambiental ou outros benefícios objetivamente mensuráveis, a serem necessariamente considerados nos critérios de julgamento do certame.

3 - O projeto é entregue no prazo, sem aditivos e aumentos de custos

No Acórdão 2.230/2014 - 2ª Câmara, o TCU reconheceu a possibilidade de a licitação na modalidade concurso permitir a contratação dos vencedores para o desenvolvimento dos projetos executivos, mediante recebimento da respectiva remuneração. Assim, os participantes do concurso podem apresentar projetos conceituais ou anteprojetos que serão examinados pela banca examinadora e a empresa vencedora será contratada para desenvolver os projetos executivos de engenharia e de arquitetura por um valor pré-fixado no regulamento do concurso.

Não se está defendendo aqui que o vencedor do concurso seja posteriormente contratado, por inexigibilidade de licitação, para desenvolver os projetos executivos do empreendimento, pois o concurso já se constitui em uma modalidade licitatória autônoma e completa, sendo um critério de seleção suficiente e legalmente adequado para contratação de projetos. É uma modalidade de licitação com a finalidade de contratar a execução futura de serviço técnico profissional especializado, e não de adquirir produto ou serviço pronto e acabado. Assim, tendo havido a licitação na modalidade concurso, não há que se falar em contratação direta, sem licitação, para posterior desenvolvimento dos projetos complementares, pois a celebração do ajuste foi previamente precedida de licitação, no caso, de um concurso.

No concurso, trabalhos preliminares ou anteprojetos de arquitetura são selecionados, sendo o vencedor contratado para desenvolver os projetos definitivos e complementares. Nada impede que a Administração distribua prêmios aos demais classificados segundo a ordem e valores estabelecidos no regulamento, mas o vencedor receberá a remuneração correspondente à contratação dos serviços que prestará, também conforme as regras do edital regulador do concurso, devendo ser previsto um valor coerente com a complexidade do objeto a ser desenvolvido.

É possível também que o concurso seja divido em fases ou etapas de cunho classificatório e eliminatório. Assim, em uma primeira fase, seriam selecionados projetos conceituais de determinada obra. Os projetistas cujas propostas fossem classificadas nessa primeira fase seriam chamados a apresentar um anteprojeto de engenharia em uma segunda etapa. Também não se vislumbra nenhum óbice de cunho legal ou técnico para que o instrumento convocatório estabeleça valores de prêmios diferenciados e crescentes para as propostas selecionadas em cada uma das etapas do concurso.

O regulamento do concurso estabelecerá um prazo para apresentação das propostas, que não poderá ser inferior a 45 dias, nos termos da lei, bem como o prêmio ou a remuneração do autor da proposta selecionada. Poderá estabelecer também que o valor da remuneração seja diferido, conforme o vencedor do concurso seja contratado para desenvolver o detalhamento do projeto, nos prazos fixados no edital. Assim, não é cabível qualquer majoração no valor do prêmio por aditivos ou que a entrega da proposta seja postergada, pois implicará na desclassificação do seu autor.

Assim, considerando-se que, no momento da contratação, a vencedora do concurso já dispõe de um projeto conceitual ou de um anteprojeto com as principais soluções técnicas do empreendimento, há maiores garantias do recebimento de um projeto com a qualidade desejada, contendo todos os elementos especificados no instrumento convocatório, dentro do prazo estabelecido.

4 - Há aumento de competitividade entre as empresas projetistas

A Lei 8.666/93 dispõe que, nos casos de concurso, poderá ser dispensada, no todo ou em parte, a documentação referente à qualificação técnica, à habilitação jurídica, à qualificação econômico-financeira e à regularidade fiscal e trabalhista. Tal disposição é plenamente coerente com a filosofia dessa modalidade de licitação, pois a Administração só pagará o prêmio ou a remuneração para o(s) melhor(es) projeto(s), após o seu recebimento, o que torna absolutamente inútil a exigência de toda a documentação que costuma ser exigida em uma típica concorrência, destinada a assegurar o futuro cumprimento das obrigações pela licitante.

Tal fato proporciona o ingresso de outros interessados na disputa, que não poderiam fazê-lo quando utilizadas as demais modalidades de licitação, por não disporem de toda a documentação necessária, em especial, de atestados de qualificação técnica.

Em alguns dos exemplos pesquisados, foram verificados dezenas de participantes nos concursos. No concurso para o projeto da Estação Antártica Comandante Ferraz, a competição teve 109 equipes inscritas e 74 trabalhos entregues. Trata-se, portanto, de modalidade licitatória democrática, que permite a participação ampla e irrestrita de profissionais.

Enfatize-se que o aumento da competitividade é salutar para o contratante, pois as empresas estão competindo em termos de soluções técnicas e não em termos de menor preço, o que maximiza as possibilidades de a Administração receber um projeto mais inovador, pois muitos profissionais estarão debruçados sobre um mesmo tema e, posteriormente, haverá contratação com honorários compatíveis com o objeto a ser entregue, sem a possibilidade de mergulho nos preços.

5 - O melhor projeto é selecionado por especialistas na área

Nos concursos, é praxe que a comissão de licitação seja auxiliada por uma espécie de banca ou comissão especial integrada por pessoas de notório conhecimento da matéria. Os integrantes da banca podem ser servidores do próprio órgão contratante, caso este disponha de pessoal qualificado para tal atribuição, ou podem ser contratados engenheiros experientes, arquitetos renomados, professores universitários ou outros profissionais aptos para integrar a comissão julgadora. Resolve-se, assim, a crônica deficiência de estrutura de diversos órgãos que não dispõem de profissionais habilitados tecnicamente para analisar e receber os projetos contratados, o que invariavelmente resulta na aceitação de projetos deficientes e incompletos.

A banca do concurso irá auxiliar a Administração contratante a elaborar os termos do regulamento do concurso, estabelecendo critérios de julgamento e produzindo outros documentos complementares e, posteriormente, atuará na seleção das melhores propostas segundo os critérios previamente estabelecidos.

É desejável ainda que a banca seja multidisciplinar, composta tanto por arquitetos quanto por engenheiros de diversas especialidades, com o intuito de avaliar as soluções estéticas, funcionais, estruturais e de instalações da edificação, inclusive os custos de construção, operação e manutenção da solução projetada, os quais devem ser seriamente considerados como um quesito de julgamento.

6 - Há isonomia e impessoalidade na seleção do melhor projeto

Os concursos conferem maior transparência e lisura à contratação de serviços técnicos, democratizando o acesso ao trabalho, na medida em que o julgamento feito pelo corpo de jurados com notório saber é realizado preservando-se o anonimato dos trabalhos, sem nenhuma identificação dos seus autores. É comum que o regulamento estabeleça que as propostas sejam entregues em envelopes lacrados, sem nenhuma marca, carimbo ou identificação dos autores dos projetos, sob pena de desclassificação. Dessa forma, a banca do concurso fará a análise das propostas sem saber quem são os seus autores, evitando-se, portanto, o direcionamento da licitação ou de qualquer tipo de favorecimento para determinada licitante.

Conclusão

Portanto, a Lei 8.666/93 é uma legislação favorável aos concursos, faltando regulamentá-la de forma apropriada. Sugere-se ainda que o PLS 559, atualmente em tramitação no Senado Federal, que objetiva instituir nova lei de licitações e contratos da Administração Pública, priorize a contratação de projetos mediante concursos.

(Artigo originalmente publicado na edição de dezembro da revista Infraestrutura Urbana)

André Pachioni Baeta é engenheiro e exerce o cargo de Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, atuando na fiscalização e controle de obras públicas. É autor dos livros “Orçamento e Controle de Preços de Obras Públicas” e “RDC – Regime Diferenciado de Contrataçãos Públicas – Aplicado às Licitações e Contratos de Obras Públicas”, publicado pela Editora Pini.

Fonte: http://www.iab.org.br/artigos/vantagens-dos-concursos-para-contratacao-de-projetos

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Sobre o Bem e o Mal

Ao longo deste ano transcrevi alguns textos do livro O Profeta (Khalil Gibran), que supunha perdido e que achei durante a mudança do meu escritório para a nova sede, e ainda me surpreendo com a repercussão positiva deles. Naquela ocasião relatei minha impressão de que estes textos, escritos como fábulas e com palavras simples, tinham o poder de sintetizar os sentimentos recorrentes das pessoas, evidenciando o senso comum sobre assuntos e emoções do cotidiano, nos fazendo ver e entender que, de certa forma, passamos todos por situações muito semelhantes ao longo da nossa vida.

Nesta semana, como contribuição de uma leitora, recebi por e-mail mais um texto deste livro que discorre sobre o bem e o mal, que transcrevo a seguir. No e-mail ela externa uma preocupação - com a qual me associo - sobre o antagonismo das emoções diante de fatos que contradizem a nossa forma de pensar e as ações das pessoas diante disto. Coincidência, ou não, escrevi sobre isto num artigo para a Zero-Hora (ZH, 26/11/2014, página 22). Esta polarização - que nos categoriza discriminadamente - entre pretos e brancos, reacionários ou reformistas, pobres e ricos, bons ou maus, traz na síntese destas emoções acaloradas a realidade de que estamos cada vez mais intolerantes com as diferenças e com as ações e opiniões que vão na contra-mão da forma como vemos o mundo e vivemos as nossas vidas.

De certa forma, existe uma boa dose de individualismo nesta forma de pensar que nos faz achar que se as coisas não são como as desejamos, elas são imperfeitas e, portanto, passíveis de julgamentos. Em consequência disto, a punição do "outro" passa a ser a ação corretiva e conciliadora das frustrações de quem defensivamente pensa assim. A falsa idéia de que "o inferno são os outros", tem levado muita gente boa a se perder na construção dos seus sonhos e desejos. E ela termina muito bem o seu delicado e-mail nos chamando à razão para olharmos as coisas - fatos e pessoas - como elas são e não como os nossos ilusórios desejos idealizadores gostariam que elas fossem, nos lembrando da necessária lucidez e do sensato equilíbrio diante das pedras do caminho e da tolerância que temos que ter diante das diferenças e dos erros. O erro, como sabemos, é sempre relativo, é o registro das possibilidades e está disponível para qualquer um experimentar, refletir, crescer e superar.

Sobre o Bem e o Mal

E um dos anciãos da cidade disse: Fala-nos do Bem e do Mal. E ele respondeu: Do bem dentro de vós, eu posso falar, mas não do mal. Pois o que é o mal além do bem torturado por sua própria fome e sede? Em verdade, quando o bem está com fome, busca alimento mesmo nas cavernas escuras, e quando tem sede, bebe até mesmo das águas paradas.

Quando sois bons, sois inteiros. Mas quando não sois inteiros, não sois maus. Pois uma casa dividida não é um esconderijo de ladrões; é apenas uma casa dividida. E um barco sem leme pode navegar sem rumo entre perigosos rochedos, mas não afundar.

Sois bons quando buscais dar de vós mesmos. Mas não sois maus quando buscais obter para vós mesmos. Pois quando lutais para ganhar, sois apenas uma raiz ligada à terra que suga no teu seio. Certamente os frutos não podem dizer à raiz: “Seja como eu, maduro, completo e sempre generoso da vossa abundância”. Pois para o fruto, dar é uma necessidade, como receber é a necessidade para a raiz.

Sois bons quando estais totalmente conscientes em vosso discurso, mas não sois maus quando dormis, enquanto vossas línguas tropeçam sem sentido. E mesmo o discurso hesitante pode fortalecer uma língua fraca.

Sois bons quando caminhais para o vosso objetivo com passos firmes e corajosos. Mas não sois maus quando andais mancando. Mesmo aqueles que mancam não andam para trás. Mas vós, que sois fortes e ligeiros, não mancai na frente dos mancos, julgando que isto é bondade.

Sois bons de incontáveis formas, e não sois maus quando não sois bons, estais apenas atrasados e com preguiça. É uma pena que as lebres não possam ensinar a velocidade às tartarugas.

Em vossa aspiração pelo vosso ser gigante está a bondade; e esta aspiração está em todos vós. Porém, em alguns de vós, esta aspiração é uma torrente correndo vigorosamente para o mar, levando os segredos das montanhas e as canções da floresta. E em outros, é um riacho calmo, que se perde em curvas, se dobra e demora para chegar à praia. Mas que aquele que aspira muito diga para aquele que aspira pouco: "Por que és vagaroso e hesitante?" Pois apenas os verdadeiramente bons não perguntam aos desnudos: "Onde estão tuas vestes?" e aos que não tem lar, "O que aconteceu com a tua casa?"



O Profeta
Khalil Gibran
L&PM Pocket 222
Primeira edição
Páginas 82-85
Abril de 2001